Sustentação oral em habeas corpus: o caso João de Deus

*Roberto Serra da Silva Maia

No dia 10.1.2018, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás permitiu que uma promotora de Justiça assumisse a tribuna para proferir sustentação oral em habeas corpus impetrado pela defesa para obtenção da liberdade do médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, o qual se encontrava custodiado por força de prisão preventiva decretada por Juiz de Direito. O julgamento foi acompanhado pela mídia, em face da repercussão nacional do caso.

A promotora havia integrado uma força-tarefa do Ministério Público de Goiás para investigar e promover ação penal contra o investigado, e não fazia parte da relação processual do habeas corpus, seja na qualidade de “impetrante”, “paciente” ou de “autoridade coatora”. Durante a sustentação oral, à mesa, o Procurador da Justiça manteve-se à direita do Presidente, portando-se como representante do Ministério Público no Tribunal; ou seja, na sessão de julgamento havia dois representantes do Parquet, uma Promotora de Justiça, que proferiu sustentação oral, e o Procurador de Justiça que esteve presente como custos legis.

A situação desperta algumas reflexões jurídicas, dentre elas, aquela externada pela seguinte indagação: poderá o Ministério Público, por intermédio de um Promotor de Justiça, que atua na persecução penal qualidade de dominus litis, intervir em sede de habeas corpus no Tribunal de Justiça contra o “paciente” em sustentação oral?

A Constituição Federal (CF) assegura em seu art. 5º, inciso LXVIII, que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Essa garantia individual não deixa de ser uma ação sui generis, possuindo polo ativo (impetrante e/ou paciente) e polo passivo peculiar (autoridade coatora). O art. 654, do Código de Processo Penal (CPP), por sua vez, estabelece que “o habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público”.

Assim, no que alude especificamente ao Ministério Público, este possui legitimidade para impetrar habeas corpus no exercício de sua função, desde que o faça em favor do “paciente” (pessoa que sofre a ameaça ou o constrangimento em sua liberdade). Neste caso, se o Promotor impetra habeas corpus perante o Tribunal, por exemplo, deve ele atuar no respectivo processo no qual é parte (impetrante), podendo, inclusive, proferir sustentação oral na Corte.

Contudo, no caso descrito (João de Deus), cuidou-se de ação constitucional de habeas corpus impetrado pela defesa técnica contra decisão judicial que decretou a prisão preventiva, da qual o Ministério Público a quo não foi o impetrante ou sujeito da relação processual.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.727/MG, resolveu questão de ordem para permitir que a sustentação oral naquela Corte fosse realizada pelo Parquet estadual, possibilitando, assim, a atuação daquele órgão perante Corte Superior, haja vista ser parte no processo.  O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgRg no HC 227.051/RS, entendeu, contudo, que não se aplica o retrocitado precedente do STF quando não for parte o Ministério Público Estadual, principalmente cuidando-se de ação constitucional de habeas corpus.

De fato, o habeas corpus cuida de uma garantia individual voltada à preservação de bem jurídico relevante do cidadão, em que o indivíduo busca do Estado a preservação da sua liberdade, o que não se confunde com ação penal, nesta admitidas, expressamente, pelo Código de Processo Penal, a figura do Ministério Público e do assistente da acusação como sujeitos processuais (arts. 24, 257, e 268 do CPP). Mas no habeas corpus não é possível a participação de Promotor de Justiça ou mesmo do assistente da acusação (STJ, HC 11649/GO) que não estejam participando da relação processual; até porque nessa esfera (writ) o Ministério Público não acusa, mas apenas participa na qualidade de custos legis ou, repita-se, como impetrante em benefício do “paciente” (art. 654, CPP).

E na qualidade de custos legis perante o Tribunal, o órgão executor do Parquet é o Procurador, e não o Promotor de Justiça. Conforme disposto nos arts. 52 e 56, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás (LC no 25/1998), compete ao Procurador de Justiça representar o Ministério Público perante o Tribunal, mediante manifestação escrita e oral. O § 1º do art. 56 é enfático ao dispor que “nas sessões de julgamento, o Procurador de Justiça deverá, se necessário, sustentar oralmente a posição do Ministério Público, quando este intervier como fiscal da Lei”. Nesse sentido, o § 3º do art. 1º do Decreto-lei no 552/1969 garante ao Parquet ad quem a “intervenção oral” nos processos de habeas corpus.

O próprio Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás não traz previsão de sustentação oral pelo Promotor de Justiça titular da persecução penal (dominus litis), senão vejamos o teor do art. 238: “durante o julgamento, poderão manifestar-se o impetrante, se o requerer, e o representante da Procuradoria-Geral de Justiça”.

Dentro do quadro normativo que rege o emprego do habeas corpus, este não pode, em hipótese alguma, ser utilizado como instrumento de tutela dos direitos do Estado, pois em nosso sistema positivo inexiste a figura do habeas corpus pro societate.

O habeas corpus de que trata a Constituição Federal deve ser visto e interpretado em função de sua específica destinação tutelar: a salvaguarda do estado de liberdade individual do “paciente”.

Ao se permitir a sustentação oral pelo Promotor de Justiça, que a despeito de não compor a relação processual do writ, atua como titular da persecução penal (dominus litis), estar-se-ia, por via oblíqua, franqueando essa importante garantia individual para satisfação de interesses da acusação. Esse sentimento, inclusive, já foi externado pelo STJ, para o qual o “Ministério Público somente pode impetrar habeas corpus em favor do réu, nunca para satisfazer os interesses, ainda que legítimos, da acusação” (RHC 20.199/RN), e também pelo STF, onde o entendimento é o de que “o remédio processual do habeas corpus não pode ser abusivamente utilizado pelo Ministério Público como instrumento de promoção dos interesses de acusação” (HC 69.889/ES).

Portanto, pode-se concluir que a intervenção do órgão do Ministério Público, em sede de sustentação oral em habeas corpus contra o indivíduo encarcerado preventivamente, objetivando satisfazer, ainda que de forma reflexa, os interesses da acusação (dominus litis) para manter o decreto prisional contra o “paciente”, descaracteriza a essência desse instrumento exclusivamente vocacionado à proteção da liberdade individual; afinal, se o direito de o Ministério Público impetrar habeas corpus em benefício de outrem não é ilimitado – por não poder ser exercido abusivamente em desfavor do próprio status libertatis do “paciente” –, a sua interveniência no respectivo julgamento, como verdadeira parte acusadora, igualmente não poderá ser admitida, sob pena de violação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF).

*Roberto Serra da Silva Maia é mestre em Direito, advogado criminalista, professor do Curso de Direito (PUC-GO), diretor da OAB-GO, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO e conselheiro Nacional da Advocacia Criminal da Abracrim – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas