Quando um documento pode salvar uma carreira: a “loteria” da judicialização médica

Alyne Morais*

Imagine a cena: um médico, dedicado e experiente, está diante de um tribunal. O que está em jogo não é apenas sua reputação, mas anos de formação, sonhos e o bem-estar de sua família. O motivo? Não foi um erro médico, mas uma falha na documentação. O prontuário era incompleto, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) era genérico e, no fim, a ausência de informações claras abriu as portas para uma condenação.

Essa história, infelizmente, é comum. Estudos indicam que cerca de 50% das condenações de médicos não decorrem de imprudência, imperícia ou negligência, mas de falhas no dever informacional. Esses casos destacam a importância de uma documentação robusta e bem elaborada como ferramenta essencial para a proteção profissional.

O dever informacional: a linha tênue entre proteção e risco

Voltando à história, imagine que, durante uma consulta, o paciente foi informado verbalmente sobre os riscos de um procedimento, mas nada foi registrado. Quando o caso foi judicializado, o tribunal concluiu que, sem provas documentais, o paciente não havia sido adequadamente esclarecido.

No Brasil, o dever informacional está respaldado por normas importantes, como o Código de Ética Médica e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que reforçam a importância do consentimento informado. Este dever não se resume à entrega de informações, mas exige que elas sejam compreendidas e registradas de forma adequada, garantindo que o paciente esteja ciente dos riscos, benefícios e alternativas de cada procedimento.

Documentação: a melhor defesa na era da judicialização

Vamos mudar o desfecho da nossa história inicial. Imagine agora que o médico tem em mãos um prontuário bem elaborado, com registros detalhados de todas as consultas, um TCLE específico assinado pelo paciente e laudos precisos que descrevem cada etapa do atendimento. Com essa base documental, a narrativa no tribunal muda completamente. Os documentos falam por si e protegem o profissional.

Entre os documentos mais relevantes, destacam-se:

  1. Prontuário médico: A linha do tempo de todo o cuidado dispensado ao paciente. Ele deve ser claro, completo e detalhado, evitando ambiguidades que possam ser usadas contra o profissional.
  2. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): Um documento que não pode ser genérico. Ele deve ser adaptado às especificidades do procedimento e revisado regularmente para acompanhar avanços na medicina e na legislação.
  3. Relatórios e laudos: Documentos que descrevem cada passo de procedimentos e exames, reforçando a transparência do atendimento.
  4. Registros de domunicação: Toda interação relevante com o paciente ou seus familiares deve ser anotada, especialmente em situações de emergência ou recusa de tratamento.

Os custos da falha na documentação

Quando a documentação é negligenciada, as consequências podem ser severas:

  • Insegurança jurídica: Sem registros adequados, a defesa do profissional torna-se frágil.
  • Risco de condenação: Falhas no dever informacional são frequentemente interpretadas como negligência.
  • Danos à reputação: O impacto de uma condenação pode ser devastador para a credibilidade do profissional.

Como construir uma documentação sólida: dicas práticas

  • Adote sistemas informatizados para registros, garantindo organização e acessibilidade.
  • Invista em formação e atualização sobre como elaborar documentos claros e específicos.
  • Revise periodicamente os documentos utilizados, assegurando que estejam alinhados à legislação e às boas práticas.
  • Conte com assessorias jurídicas especializadas para revisar protocolos e fornecer suporte em casos de dúvidas.

Conclusão

No mundo em que a judicialização da saúde se torna cada vez mais presente, os documentos médicos deixam de ser apenas formalidades burocráticas e passam a ser verdadeiros escudos de proteção para o profissional. Ao garantir que cada detalhe esteja registrado de forma clara, precisa e personalizada, é possível transformar cenários de risco em histórias de sucesso. Afinal, no fim do dia, o registro correto não é apenas uma exigência ética, mas a melhor defesa para uma carreira construída com dedicação e excelência.

*Alyne Morais é especialista em Direito Médico, Odontológico e à Saúde. Sócia-proprietária do Escritório AM Advocacia Especializada.