Por que estranhamos tanto a execução penal no Brasil?

*Marcelo Bareato 

É de se questionar o estranhamento causado quando o telespectador se depara com notícias do tipo veiculado no último domingo: “Flagrado com regalias, Cabral será transferido de presídio no Rio” (programa Fantástico/Rede Globo, domingo 01/05/2022).

Malgrado a afirmação acima, isso demonstra nossa total ignorância quanto ao sistema de justiça criminal brasileiro e, sobretudo, com a forma adotada para execução penal, o que possibilita informações desencontradas e um certo “joguete” da população, de um modo geral, para formação de uma tomada de posição, a qual, quase sempre, tende a uma apreciação injusta.

Para que possamos começar a desfazer esse aglomerado errôneo de informações, tenhamos por início a Constituição brasileira de 1824, a qual teve a missão de reformar o sistema punitivo e banir os açoites, os castigos físicos, implementar um ambiente seguro, limpo e arejado, com a separação por presos e crimes cometidos.

Vemos, pois, que o assunto a ser tratado no presente artigo é por demais antigo e tormentoso, demandando esforços para que possamos entender a razão dos fatos e, como esses fatos, chegarmos ao atual momento histórico.

 De pronto é fácil compreender, pela Constituição de 1824, que não caminhamos para longe das torturas e tratamento desumano. Ao contrário, insistimos em manter velhos hábitos, negar nossas origens, ignorando todas as normativas legais existentes.

Dito isso, é importante lembrar que o nosso sistema, que integra as diretrizes da execução penal no eixo das Américas e, portanto, sujeito as regras internacionais para direitos humanos, embora copiado para diversos países por apresentar uma parte escrita de excelência, está longe de ser referência na prática. Existindo, ainda, aqueles que sustentam que estamos longe de nos tornarmos apenas cumpridores das regras mínimas para tratamento do encarcerado como detentor de direitos e dignidade para uma pena justa.

Mas de nada adiantaria tecer os comentários acima se não trouxéssemos referências nas diversas legislações existentes, sobre os encarcerados e seus direitos.

Assim, comecemos com as considerações tecidas por JAPIASSU e FERREIRA, na Revista Magister de Direito Penal e Processo Penal, n.º 104, de outubro/novembro de 2021, página 27, a qual indicam que:

  • – A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – vem reconhecendo a violação da integridade pessoal da pessoa presa em razão da conjugação da superlotação com outras circunstâncias, como falta de higiene, iluminação natural, ventilação, tratamento médico inadequado, ausência de cama

 

para repouso, isolamento ou restrições à comunicação, isolamento em cela reduzida, restrições indevidas ao regime de visitas, indisponibilidade de água – casos: Hilaire, Constantine e Benjamin e outros v. Trinidad y Tobago, entre outros.

  • – O DIREITO DE RECEBER VISITAS FAMILIARES – as visitas são o meio de contato principal e preferencial entre pessoas privadas de liberdade e suas famílias, constituindo componente essencial do processo de reintegração.

O direito às visitas familiares é previsto nas Regras Mínimas das Nações Unidas sobre o Tratamento de Presos (Regra 37), no Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Submetidas a Qualquer Forma de Detenção ou Encarceramento (Princípio 19), bem como na Convenção Internacional para proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (art. 17).

Já em âmbito interamericano, os Princípios e Boas Práticas de Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas estabelecem que as pessoas privadas de liberdade têm direito de manter relações pessoais e diretas, mediante visitas periódicas dos membros de sua família, de seus representantes legais e de outras pessoas, particularmente, de seus pais, de seus filhos e de seus cônjuges.

 

Não menos importante e, lembrando que às normas de direito internacional tem incidência direta em nosso ordenamento jurídico e influenciam sobremaneira a confecção de nossas leis e comportamentos, é fato que no sistema de justiça brasileiro detém o mandamento constitucional previsto no artigo 5.º, inciso XLIX o qual assegura o respeito à integridade física e moral dos privados de liberdade, da mesma forma em que o inciso LXIII protege o direito à “assistência da família e de advogado”. Ainda, se nos recorrermos ao artigo 136, da mesma Constituição, veremos que é vedada a incomunicabilidade do preso, conforme inciso IV.

Não é por menos que a Lei de Execução Penal – Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, em seu artigo 41, X, determina que constitui direito do privado de liberdade a “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”.

Também encontramos diretrizes sobre a execução penal no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, quando no artigo 19, § 4.º, para quem “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial”.

Se atentarmos ao judiciário, bem como a todos os agentes envolvidos para que o sistema de execução da pena funcione e traga resultados focados na reintegração e aquisição de valores do encarcerado junto a sociedade, perceberemos que o artigo 61 da Lei de Execução Penal é bastante claro ao afirmar que:

Art. 61. São órgãos da execução penal:

I – o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária;

II – o Juízo da Execução;

III – o Ministério Público;

IV – o Conselho Penitenciário;

V – os Departamentos Penitenciários;

VI – o Patronato;

VII – o Conselho da Comunidade.

VIII – a Defensoria Pública. (Incluído pela Lei nº 12.313, de 2010).

 Com o mesmo grau de importância, quando o juiz criminal emite uma sentença com decreto condenatório, a mensagem passada ao acusado é que ele não está socializado e, portanto, deverá passar um período sob a tutela do Estado para que possa adquirir conceitos e valores que lhe possibilitem o retorno e a convivência com seus pares, do lado de fora.

E, com todas essas referências, você, nosso Leitor, poderia estar se perguntando: se temos tantas leis e se o nosso sistema já foi inclusive copiado para outros países, se o Estado brasileiro recolhe aquele que não está adaptado para fazer com que nasça nele valores que antes não existiam, como acontecem coisas como a noticiada acima? O que estamos fazendo de errado?

A resposta é por demais simples!

Quando criamos nosso sistema de execução penal, o fizemos na perspectiva de que todos os entes envolvidos trabalhariam em prol do bem comum, cada qual exercendo as suas funções e primando pelo fim maior de reintegrar o cidadão encarcerado com os valores que a sociedade lhe cobraria.

A partir dessas normas e sem qualquer fiscalização que recaia sobre aqueles que deveriam verificar se tudo está a contento, seguindo os ditames legais, damos a entender aos integrantes do rol do artigo 61 da Lei de Execução Penal que, acreditando uma vez condenado, o agente irá para a prisão e que o local seja à prova de fuga, que o diretor e seus agentes sejam íntegros e não permitam qualquer tipo de corrupção interna, que o sistema seja dotado de espaço e acomodações como os filmes europeus e norte-americanos nos mostram na tv, que tudo dará certo e teremos, em alguns anos. o encarcerado do lado de fora, totalmente regenerado e pronto para conviver conosco e nossos filhos. Ou seja, damos como certo que tudo está em ordem e que a nós não é dado fiscalizar, mas apenas esperar que os escritos legais sejam cumpridos por aqueles que tem o dever de fazê-lo.

Ledo engano!

Como aprendemos nos bancos mais elementares no caminho por nossa formação e educação, para que algo seja posto em movimento, é necessário que façamos o esforço de dar a propulsão e acompanhar o trajeto, nos responsabilizando pelos danos que o objeto causar no curso que estabelecemos.

Esquecemos, pois, de cobrar de todos aqueles que são remunerados pelo Estado para viabilizar os sonhos do parágrafo anterior, a efetiva participação e propiciamos um sistema que insiste em nos decepcionar. Nele, no sistema prisional, temos: superlotação: em média 20 pessoas por cela (as vezes chegamos a ter até 60 pessoas), num espaço para 5 ou 6; onde é servida comida, vez em sempre, em quantidade inferior ou deteriorada; onde as pessoas se desigualam desde a chegada, com ausência de uniformes, itens de higiene e limpeza; local onde os servidores, hoje policiais penais, em sua maioria são temporários ou não possuem armamento e equipamentos de segurança para lidar com os que estão privados de sua liberdade e não possuem formação voltada ao trato de pessoas encarceradas, focado no que determinam as regras de Direitos Humanos; Também locais antigos, inadequados e não preparados para o número de pessoas que recepcionam, leia-se: sem oficinas para o trabalho, enfermarias, médicos, dentistas, escolas, assistentes sociais, psiquiatras, etc.

Essa realidade, que não chega até os cidadãos residentes do lado de fora, por não ser interessante ao próprio Estado explicar a razão da sua ineficiência, quando recebe valores altos, anualmente, para propiciar um sistema de primeiro mundo, nos dá a certeza não estamos (res)socializando ninguém; Ademais, não se remunera ou mesmo fornece segurança, como deveria, para aqueles que lidam diretamente com o preso e não se fiscaliza os sistemas para prover as melhorias que são necessárias e que sem elas, toda sorte de “mazelas”, passarão a acontecer.

É esse sistema que a televisão nos noticia com muita frequência e que está longe de ser melhorado.

Com essas observações, percebemos que sem fiscalização, a corrupção se torna a regra. Os encarcerados que possuem melhores condições financeiras passam a ditar as regras, as regalias passam a distinguir quem manda e quem obedece, os presídios se tornam fortalezas de onde a criminalidade é comandada e onde a segurança (para os que comandam) é reforçada.

Formam um microssistema, onde as regras estabelecidas para a convivência dos presos são elaboradas pelos próprios encarcerados e aplicadas à risca, como forma de prevenir que os “intramuros” se dispersem ou tentem reivindicar o poder.

É esse o retrato que conhecemos, que vemos todos os dias na mídia, mas que parece só nos incomodar quando à notícia de certos luxos nos chegam aos olhos, não nos abalando quando sabemos que houve fuga, morte, tortura, tratamento desumano ou quando um familiar de preso é maltratado, impedido de levar comida para um ente querido ou reduzido a condição de “tão culpado quanto”.

Nesse sentido, onde não fazemos a menor questão de fiscalizar ou cobrar dos responsáveis que cumpram o dever para o qual foram contratados, empossados e concursados, aceitando, como no caso da reportagem, que Cabral seja transferido de sistema, mas que os facilitadores não sejam responsabilizados pela entrada de todas as regalias, nos parece uma grande incoerência fazer cara de surpresa com certas informações midiáticas.

Talvez a pergunta que fica é: do que vale transferir o Cabral para outro sistema se os responsáveis pela entrada dos objetos e regalias não serão punidos para dar a ideia aos demais de que essa não é uma atitude aceitável e que será tolerada pelo contribuinte?

O pensamento nesse caso é por demais simples, se o Estado é responsável pelo cidadão encarcerado, o encarcerado não pode cometer crimes, mas sim os que representam esse Estado e deveriam ser exemplo para uma reinserção na sociedade, seja pela lisura com que conduzem seu trabalho, seja pela adequação estabelecimento responsável por guardar o preso, pela higiene, pela condição de não permitir a superlotação, pelo trabalho e estudo, ou, por mostrar que os valores que esperamos aqui, do lado de fora, são possíveis e serão facilitados para que tenhamos uma convivência harmônica e pacífica.

Assim, e com as informações condensadas no artigo de hoje onde questionamos o POR QUÊ ESTRANHAMOS TANTO A EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL? Talvez tenhamos esquecido de que, quem pode mudar as regras do nosso destino somos nós mesmos e não cabe aqui esperarmos que outra pessoa venha empreender esforços para cumprir o que nos compete.

Vivemos, pois, a eterna espera do super-herói que tudo resolverá por nós, cidadãos presos, quem sabe, em 1978 quando Caetano Veloso, em sua canção Sampa, já proclamava: “é que narciso acha feio o que não é espelho”, sem nos dar conta de como superar o mito de Narciso, da mitologia grega, do século XIX, abandonando a necessidade de ser admirado e passando a ter mais empatia aos problemas que nos rodeiam.

Marcelo Bareato é advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Membro da Coordenação de Política Penitenciária do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).