O sistema penitenciário brasileiro e o boiadeiro de gado nelore

*Rafael Lopes

Em uma de minhas idas em certo complexo penitenciário, enquanto aguardava o monitor (agente prisional) da ala conduzir o meu cliente para o parlatório – lugar onde o encarcerado e advogado conversam reservadamente –, onde iríamos discutir os seus processos criminais, certo agente prisional, no balcão ao lado do detector de metal, começou a queixar-se sobre o seu trabalho, levantando várias questões de ordem: começando com seu salário e condições de trabalho, e por aí vai.

Aproveitando a abertura de diálogo daquele agente comigo, senti-me à vontade para indagá-lo:  “inspetor, não é segredo pra ninguém que dentro do presídio há armas, drogas e celulares. Armas como instrumento de defesa ou ataque, drogas para abastecer a mercancia interna e celulares para os presos conversarem com os familiares e, principalmente, dar movimento de ordem ao crime fora dos muros da prisão”. Continuei: “para solucionar toda essa crise do sistema penitenciário brasileiro, reabilitando efetivamente os reclusos, porque não começar retirando tais benesses? ”.

Aquele agente, o qual tinha em torno de 50 anos de idade, um semblante de cansaço e conhecimento de cada metro quadrado dali, olhando por cima dos seus óculos “de grau”, construiu uma metáfora simples, objetiva e certeira: “Doutor, imagine o seguinte cenário:  um curral feito de tábuas finas, velhas e frágeis, completamente cheio de gado nelore – diga-se, suportando apenas 100 cabeças, porém com 500 –, animais estritamente bravos e ariscos. Por outro lado, pense num boiadeiro: uma pessoa desmotivada e exausta, o qual tem o labor de zelar do rebanho, não ganhando o suficiente para o sustento próprio e de sua família, equipado unicamente com um singelo pedaço de pau, não tendo sequer um cavalo para exercer o seu mister. ”.

Continuou o agente público: “pois bem, esse simplório boiadeiro tem seu sucesso dependente de sua conduta diante do manejo dos animais – os quais são postos sob a sua responsabilidade e zelo: se, por acaso, deixar o gado nervoso e agitado, para exemplo, negando que comam no pasto, batendo e gritando com os nelores, não demorará muito para que a boiada estoure, arrebentando e quebrando todo o fraco curral, tomando rumos imprevisíveis e catastróficos”.

De testa franzida e com o rosto corado por estar enérgico com o assunto, avançou o agente conclamando em tom incisivo: “Doutor, esse presídio, como qualquer outro no Brasil, é o curral; e eu sou o boiadeiro”.

Numa atenção máxima, segui atento ao declame daquele homem: “ Enfim, Doutor, respondendo à sua pergunta:  aqui não é diferente do curral, do gado e do boiadeiro que falei, pois se cortarmos as drogas, armas e os telefones, a boiada estoura, a cadeia ‘vira’, há rebelião”.

Entendendo perfeitamente a mensagem que aquele agente prisional tentou passar-me, esquecendo até do meu cliente que me aguardava no parlatório, finalizei nossa conversa com uma pergunta: “E o fazendeiro, o que ele acha de toda essa história? ”. Respondeu o funcionário da cadeia: “para o fazendeiro pouco importa, pois essas reses são as de menor valor de todo o seu rebanho. E, caso a boiada estoure, envia de imediato os seus melhores e mais equipados boiadeiros para controlar a situação”.

*Rafael Lopes é advogado, membro da Comissão de Direito Criminal OAB/GO.