Lei Especial é aplicada em casos de rescisão unilateral de contratos com Pacto Adjeto de Alienação Fiduciária ajuizados por devedores fiduciantes

*Renata Barbosa Marques

A pandemia trouxe incontáveis mudanças à sociedade, as quais exigiram rápida e profunda adaptação. Nas relações contratuais, contratantes e contratados se viram afetados e, com bom senso, promoveram juntos readequações a fim de atender aos interesses de cada parte sem prejudicar sobremaneira qualquer delas.

Em certas situações, contudo, os efeitos da pandemia passaram a ser utilizados como genérico fundamento para o descumprimento de obrigações contratuais válidas, legais e que contavam com a prévia ciência sobre seus termos, o que acarreta, por certo, uma quebra antecipada de negócio e um consequente prejuízo àquele que não esperava o fim abrupto da relação.

Questão interessante – e que tem sido alvo de severas discussões junto aos Tribunais Estaduais e ao STJ – é a referente à rescisão de contratos firmados sob o regime de alienação fiduciária. Tais instrumentos são expressamente regulamentados pela Lei nº 9.514/97, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

Vale dizer que a citada Lei nº 9.514/97 define tal regime no artigo 22 e seguintes, como sendo o negócio jurídico pelo qual o devedor (fiduciante), com o objetivo de garantia, pactua a transferência ao credor (fiduciário) da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Em suma, a sistemática da lei é a seguinte: o comprador do imóvel aliena-o ao credor fiduciário a título de garantia, ficando a propriedade do imóvel em caráter resolúvel, ou seja, somente haverá propriedade plena com a resolução da obrigação (= o pagamento da dívida).

O Superior Tribunal de Justiça tem entendido em recentes julgados que a incidência da Lei nº 9.514/97 deve se dar independentemente da prévia realização do registro do contrato, porquanto, além de não existir na legislação previsão expressa no tocante ao exato tempo em que a providência deve ser efetivada, desde que antes da abertura do aludido procedimento, destaca que a ausência de registro não tem o condão de invalidar o negócio jurídico firmado entre as partes, sendo a medida essencial tão somente para o conhecimento de terceiros de boa-fé que porventura se interessassem na aquisição do bem.

Recentemente, o Tribunal de Justiça de Goiás publicou inúmeras decisões no sentido de se aplicar a legislação específica aos casos de rescisão com pedido de devolução de quantias pagas, uma vez demonstrada a inadimplência do comprador. No dia 03/08/2021, por exemplo, a Juíza da 12ª Vara Cível de Goiânia julgou improcedente pedido de rescisão contratual, sustentando que “havendo regramento específico posterior, deve este prevalecer sobre a regra geral, in casu, o Código de Defesa do Consumidor, quando incompatíveis entre si. Em suma, é de aplicar a legislação específica, em detrimento daquela que institui ordenamento geral.”

Na mesma linha, no último dia 13/08/2021, em sentença proferida pela Juíza da 1ª Vara Cível da Comarca de Senador Canedo, julgou-se improcedente pedido de rescisão e restituição de valores pagos em contratos dessa natureza, sob o fundamento de que não sendo caso de simples compra e venda de bem imóvel, as disposições do CDC não podem ser aplicadas de forma indistinta, tendo em vista a existência de norma específica que rege a matéria. Na oportunidade, consignou-se ainda que não tendo sido identificado nenhum abuso na liquidação do contrato, não há se falar em devolução de parcelas pagas, ressalvando-se, todavia, que a autora poderá promover de ação autônoma para prestação de contas após o leilão do imóvel (analogia ao art. 2° do Decreto-Lei n° 911/69).

Em outra sentença, ficou decidido que “a ausência de registro do contrato no caso em apreço não implica a invalidade ou ineficácia do negócio jurídico em relação às partes contratantes, surtindo efeitos apenas em relação a terceiros” (STJ, Monocrática no REsp nº 1.846.442/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 08/11/2019).

No STJ, o Tema 1.095 discute a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia. A Segunda Seção, por unanimidade, afetou sob o rito dos recursos repetitivos, nos termos do voto do Ministro Marco Buzzi, os recursos especiais 1.891.498 e 1.894.504, suspendendo a tramitação, em todo o território nacional, dos processos que versem sobre idêntica questão jurídica, até o julgamento e consolidação do entendimento acerca do tema.

A questão é realmente tormentosa, reclama pacificação pelo STJ e, uma vez decidida, trará a segurança jurídica necessária à sistemática dos contratos.

*Renata Barbosa Marques é advogada, especialista em Direito Civil, Empresarial e Imobiliário e coordenadora jurídica do Núcleo de Direito Imobiliário do escritório Tibúrcio Freitas Advogados.