Para onde foi a liturgia?

*Marcelo Bareato

Interessante o cenário que a política, de um modo geral, tem enveredado nos dias atuais.

Para longe de qualquer tipo de política partidária, seja ela dos Bolsonaristas, Lulistas, dos que pretendem um Brasil comandado por militares ou por outras mãos, o certo é que ao delegarmos a obrigação de fazer para terceiros, deixamos escapar nossa responsabilidade para com o presente e, por que não dizer, o futuro e as próximas gerações.

Essa atitude de acreditar que alguém deve fazer por nós, de que há um escolhido e ele colocará o país nos trilhos, antes de qualquer outra coisa, mais não é do que deixar o comodismo se apropriar do dever cívico de agir e determinar os rumos da democracia e solidariedade.

Democracia porque é através dela que todos os cidadãos elegíveis participam na proposta, no desenvolvimento de leis e no ditar os rumos de seu país, solidariedade porque é ela que nos obriga uns aos outros e cada um a todos, fazendo com que cada brasileiro, com ou sem voz, passe a ser considerado como um elo importante, merecedor do mais absoluto respeito para que possamos alçar voos maiores.

Dito isso, os últimos acontecimentos vêm demonstrando que estamos perdendo o controle e permitindo que o total descomprometimento para com o povo brasileiro tome conta do cenário político, devolvendo a nós, cidadãos, o que há de pior e mais devastador.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal determinou a prisão de Roberto Jefferson, a busca e apreensão na casa de Sérgio Reis, ambos por manifestações contrárias ao proceder da Corte Maior e favoráveis ao atual Presidente da República. Este, por sua vez, ingressou com pedido de impeachment do Ministro que determinou às medidas suprareferidas, ambos num verdadeiro menosprezo à Constituição Federal, às leis vigentes e ao erário público.
E, talvez, você se pergunte: onde está o erro nesses acontecimentos?

Para começar, um poder não pode se sobrepor ao outro, vale dizer, a voz das ruas deve ser ouvida pelo Legislativo e Executivo, jamais pelo Judiciário. Cabe ao Judiciário o poder dever de dizer o direito através das leis e essas, as leis, devem ser do nosso conhecimento e ter nossa participação. Não por menos, os integrantes do Judiciário, diferente dos demais poderes, não são eleitos, mas sim, concursados.

Desta feita, o Supremo Tribunal Federal tem por função precípua ser o guardião de nossa Constituição Federal, o que não lhe confere o status de “dono” da Magna Carta. Assim, e para que fique bem claro: 1 – não lhe compete determinar a abertura de CPIs; 2 – não pode votar e decidir quando um Ministro pode ou não ser investigado pela Polícia Federal; 3 – não lhe compete decidir se a Copa América deve ou não ser realizada no Brasil, etc., situações esdruxulas, as quais além de não pertencer as suas funções, atravancam o andar das ações e recursos que lá tramitam e aguardam dos 11 ministros que atuam em cada Casa, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, uma resposta em tempo hábil e que seja no sentido de resguardar direitos e garantias.

No mesmo sentido e voltando os olhos de forma específica ao STF, se não podemos permitir que o principal Tribunal do país se torne dono de tudo e de todos, outra sorte não há quanto à transmissão das audiências para que a população tenha acesso aos conteúdos. Essa visibilidade e “transparência” outra coisa não é, do que a necessidade que alguns Ministros tem de buscar popularidade e afirmação de suas medidas e decisões, todas pautadas apenas na moral e bons costumes, itens proibidos quando o que interessa é saber os limites de cada princípio previsto no texto Constitucional. Sobre esse aspecto, é importante lembrar que o grande fator a validar essa triste tomada de posição é o fato de que o cidadão brasileiro não possui cultura jurídica, vale dizer, não conhece as leis para emitir uma opinião consistente e examinar se a decisão tomada está corretamente pautada nos ditames legais, ou não.

O que é pior! Essa forma televisiva faz gerar o que conhecemos como politicagem partidária, o que é absolutamente contrária a todo e qualquer sistema jurídico no mundo, ou seja, o Judiciário deve aplicar as leis e jamais indicar que o correto seja o que cada julgador entende por correto, baseado nos seus princípios pessoais.

Essas formas pouco ortodoxas, permitem que Ministros sejam nomeados por Presidentes a cada mandato e, nesse contexto vale lembrar que: José Sarney indicou 5 Ministros, Fernando Collor 4 Ministros, Itamar Franco 1 Ministro, Luiz Inácio 8 Ministros, Dilma Rousseff 5 Ministros, Michel Temer 1 Ministro e o atual Jair Bolsonaro 1 Ministro, tornando os Tribunais Superiores verdadeiros nichos para decisões que lhes são favoráveis, o que, de per si, torna viciada a autonomia do órgão e obriga a repensar o modelo que adotamos como forma de prover tais cargos.

Referidas e sucessivas nomeações, aliadas ao fato de que uma vez nomeados os Ministros exercerão suas funções de forma vitalícia ou como disse um político de outrora, são imexíveis, permitem que os julgadores imprimam qualquer forma de decisão, a qualquer caso que lhes bata a porta, sem atenção ao texto constitucional, fazendo do Brasil um país onde anualmente julgamos na Corte Suprema 92.399 feitos, enquanto outros países como a Alemanha julga 6.133, Israel 1.852, França 156 e Estados Unidos 82.

Falamos, pois, de decisões que se tornam irretocáveis, a uma porque a população não conhece seus direitos, depois porque se não conhecem seus direitos, não saberão como recorrer ou responsabilizar eventuais erros, conferindo ao julgador desidioso a certeza de que são dotados de um poder indestrutível, ocasionando, no caso do pedido de impeachment do Ministro por parte do Presidente, manifestações de seus pares, aposentados ou não, no sentido de que o Presidente pode protocolar o pedido de impeachment que bem entender, que ele será engavetado e pronto ou como diz a matéria veiculada no site direitonews, na data de 23 de agosto de 2021, o “Estado Democrático de Direito não tolera que um magistrado seja acusado por suas decisões”.

Ora! Lembremos aqui meus Caros Leitores, que os Magistrados, como seres humanos que são, estão sujeitos a falha e paixões e que, também por isso, para que tenhamos segurança jurídica, criou-se no Direito Brasileiro, o duplo grau de jurisdição, a Lei de Abuso de Autoridade, entre outros dispositivos no mesmo sentido.

Percebam o quão contraditórias e incoerentes algumas manifestações da Corte Suprema, sem qualquer preocupação com o que a população vai dizer ou pensar da Casa que deve ser a guardiã da retomada da estabilidade política e estrutural do Brasil.

Destarte, como bem sabemos, as mais diversas declarações de Ministros do Supremo sejam em entrevistas, palestras e posicionamentos perante a população, são no sentido de que o que lhes interessa é buscar a voz das ruas e se tornarem populares. Preocupante posicionamento já que a tal popularidade presta um desserviço negando a lei e trilhando caminhos diversos ao Estado Democrático, validando, por exemplo, o uso indiscriminado de agravos para suprimir instâncias e fazer com que os recursos cheguem ao Supremo Tribunal Federal sem passar pelo Superior Tribunal de Justiça, em mais uma demonstração de desestruturação política de poderes e suas funções.

Essa instabilidade, que parece ser comum nos dias atuais, levam ao descontrole da população que passa a receber notícias enviesadas e entender que todos os Tribunais e Ministros estão errados, pendendo, alguns, pelo fechamento do STF, outros pela convocação de greves, outros pela invasão dos poderes e os mais radicais, pela tomada a força pelos militares, do comando desse país.

Estamos criando inimigos imaginários a todo instante, como por exemplo, atores e atrizes, canais de televisão, apoiadores de partidos diversos, pessoas que talvez como nós, sem preparo ou conhecimento legal, apenas repliquem textos que pessoas oportunistas escreveram para ver “o circo pegar fogo”.

O fato é que a opção de pedir por greve, pedir que o Presidente seja deposto, que novos rumos sejam tomados, nada mais é do que o retrato de um povo que está por demais cansado dos abusos, arbitrariedades e desmandos dos três poderes, mas que não consegue encontrar um caminho para alçar novos voos em busca de um lugar ao sol, um espaço de respeito às suas necessidades, da estabilidade jurídica e emocional e de uma nação com credibilidade.

Esse caminho é por demais simples e perpassa pelo ensino de leis e Constituição desde os primeiros bancos escolares, pelo desejo de conhecer as leis e saber quais são os seus direitos e deveres e, sobretudo, de ter a certeza que o representante escolhido fará aquilo que mandarmos, evidente, quando soubermos o que pedir ou mandar, da mesma forma que um empregado só fará bem o serviço que lhe for destinado quando tivermos o conhecimento necessário para pedir e fiscalizar-lhe o trabalho.

E que não nos enganemos, a LITURGIA, que no linguajar popular significa a compilação dos ritos e cerimônias religiosas, mas que cabe como uma luva em nosso texto, notadamente quando outrora já foi alvo de questionamento dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, na voz do aposentado Ministro Marco Aurelio, tende a se perder no tempo se permitirmos esse descontrole, populismo e falta de lastro a Lei Maior como estamos fazendo.

Oxalá possamos rever nossos conceitos e posições para composição dos três poderes, antes que só nos reste perguntar, sem qualquer respeito por nossos direitos e garantias fundamentais: PARA ONDE FOI A LITURGIA?

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).