Hidroxicloroquina x Covid-19: análise do direito médico brasileiro

*José Salamone

Em razão da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a comunidade científica mundial está em uma busca incansável de medicamentos e vacinas que possam conter a propagação desse vírus e imunizar a população.

Enquanto perduram as pesquisas, os especialistas, que já́ sequenciaram o genoma desse novo coronavírus, encontraram na hidroxicloroquina um resultado positivo na diminuição da carga viral no paciente, podendo levar a uma remissão da doença em casos clinicamente agravados. Porém, é importante ressaltar que a administração do medicamento, que é indicado para afecções reumáticas, dermatológicas e malária, ainda não tem indicação farmacológica específica para a Covid-19.

Em um contexto mais amplo, cada medicamento registrado no Brasil possui aprovação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão regulador vinculado ao Ministério da Saúde. Dentre suas atribuições, está, principalmente, o registro de medicamentos que visa o bem-estar físico, mental e social da sociedade. Para que sejam aprovadas as suas indicações, são necessárias que sejam comprovadas a qualidade, eficácia e segurança de cada medicamento, baseando-se em avaliações de estudos clínicos que comprovem, mais especificamente, os dois últimos requisitos citados. A hidroxicloroquina, por exemplo, não é registrada para o uso específico do novo coronavírus.

Contudo, existe uma prática paralela ao uso de tais remédios que ainda não possuem comprovação direta. A OMS (Organização Mundial da Saúde) conceitua medicamentos “off label” como todas as indicações usuais que não foram descriminadas em bula ou que ainda não possuam sua indicação aprovada pela agência reguladora para o fim no qual foi destinado. Nos EUA, o uso off label é uma prática legal e o FDA (Food and Drugs Administration), agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos norte-americano, regulamenta a comercialização de medicamentos que ainda não possuam estudos aprovados para as indicações prescritas por profissionais de saúde, como é o caso da hidroxicloroquina.

No Brasil, para o Ministério da Saúde, o uso off label apenas se justifica quando as indicações estiverem apresentadas em estudos científicos com perfis comparativos, apresentando custo-benefício, além da eficácia, efetividade e segurança na sua indicação. A prática off label pode elevar os riscos de danos à saúde, portanto, não tem aprovação da agência reguladora brasileira. Embora a prática não seja incorreta, são necessários anos de estudos e ensaios clínicos para então se concluir uma nova indicação de um medicamento.

Portanto, diante do quadro pandêmico da Covid-19, onde milhares de pessoas ao redor do mundo estão sendo infectadas e mortas e ainda sem a descoberta de uma droga ou vacina específicos, a pergunta mais comum é: a hidroxicloroquina, cuja experiência já́ rendeu resultados positivos, deve ser ministrada mesmo não sendo autorizada pela ANVISA?

Diante dessa questão, cabem algumas ponderações no âmbito do direito médico brasileiro sobre a responsabilidade médica na indicação de medicamentos dessa natureza.

O Código de Ética Médica preconiza em seu artigo XXI que “no processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.

Com essa observação, a aceitação do médico assistente sobre a escolha e consentimento por parte do paciente ou familiar encontra respaldo legal, nas hipóteses de procedimentos terapêuticos cientificamente comprovados, o que não envolve a medicação em análise. Na indicação terapêutica de remédio sem aprovação cientifica, o médico assistente é responsável por eventuais danos ocasionados ao paciente decorrentes da administração do remédio, tanto na esfera ético-profissional quanto cível e criminal.

Por isso, a indicação terapêutica de medicamento off label deverá ser prescindida por um “Termo de Consentimento Informado” pelo paciente ou seu familiar visando minimizar a responsabilidade do profissional na hipótese de consequências danosas em razão da sua administração.

Nos deparamos com uma outra situação embaraçosa para o profissional acerca da “chance de cura”. Na medida em que os bons resultados da hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19, especialmente em casos graves, vêm a público, sua não administração também poderá́ responsabilizar o médico caso o paciente venha a óbito, podendo ser considerada como uma “última chance” que o profissional não tentou. Tal desfecho poderá́ acarretar discussão judicial em ação indenizatória contra o médico e hospital. A “perda de uma chance” é uma construção doutrinária francesa e adotada por outros países com plena aceitação jurisprudencial em nossos tribunais.

Assim, cabe ao profissional em comum acordo com o paciente ou familiar responsável a difícil decisão de administrar um medicamento não regulamentado que, empiricamente, tem trazido resultados satisfatórios no tratamento do novo coronavírus.

*José Salamone é advogado especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito e Universidade de Coimbra, Portugal. É membro da Comissão Especial de Direito Médico da OAB/SP e credenciado pelo Conselho de Ética e Disciplina junto ao CREMESP (Conselho Regional de Medicina de São Paulo).