Foro privilegiado, esperança de impunidade

advogado alex neder 3 “O maior estímulo para cometer faltas é a esperança da impunidade” (Cícero)

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, mais conhecida como constituição cidadã, assim denominada pelo saudoso Ulisses Guimarães, no capítulo I dos Direitos e Deveres individuais e Coletivos, um dos mais importantes capítulos da lei maior, diz em seu artigo 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…).” Embora o comando constitucional do artigo 5º diga isso expressamente, essa mesma Constituição fez exceções, estabelecendo o Foro por prerrogativa de função que assegura aos parlamentares, deputados federais e senadores que praticam crimes comuns serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal, §1º, do artigo 53, e no artigo 102, também estabelece que compete ao STF processar e julgar originariamente nas infrações penais comuns o Presidente da República, o Vice-Presidente,  Ministros de Estado, dentre outros, alíneas “a” e “b” do mencionado artigo 102, e por aí vai, estabelecendo ainda, no artigo 105, que cabe ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar nos crimes comuns os Governadores dos Estados e Distrito Federal, desembargadores e várias outras autoridades descritas na alínea “a” do citado artigo. Além de que, os deputados estaduais,  prefeitos e outras autoridades são julgados pelos Tribunais Estaduais e Federais.

O mencionado Foro por prerrogativa de função, comumente conhecido como Foro privilegiado, inegavelmente acaba por  criar uma situação de privilégio para políticos e demais autoridades em razão de que, a grande maioria dos que  respondem a um processo criminal, não chegam a ser julgados.

O foro por prerrogativa de função ou foro privilegiado tem como essência a preservação e proteção do cargo público ou mandato eletivo,  mas, na prática acaba por garantir aos políticos e as demais autoridades um privilégio que cria um desequilíbrio que  “blinda” o transgressor, ao passo que, a essência seria proteger o cargo para que seu ocupante, autoridade ou político, possa lutar com destemor em defesa do povo, do Estado e do País, denunciando crimes e criminosos, combater o poder econômico, os desmandos dos poderosos, impedir que projetos ruins e perniciosos venham a ser aprovados em detrimento da sociedade brasileira como assistimos a pouco, uma enxurrada de PECs 33, 37, 53, 75 dentre outras, com o  escopo revanchista, e pior, com o  objetivo de fragilizar as instituições, ao invés de fortalecê-las! O objetivo do foro por prerrogativa de função é garantir aos seus detentores condições de combater a malversação do patrimônio público, combater a corrupção, fazendo prevalecer o império da lei e o primado da ética e respeito à coisa pública.

Recentemente, o povo brasileiro assistiu estupefato e indignado, o ex-presidente Lula buscar santuário no cargo de Ministro da casa civil para escapar da operação lava jato, tudo isso com o apoio da presidência da república, fato que ecoou no Brasil e no mundo como um escândalo vergonhoso, que avilta a democracia e amesquinha a ordem jurídica e constitucional!

Infelizmente o que estamos assistindo hoje é a inversão de tudo o que preconiza os fundamentos do foro por prerrogativa de função, políticos  e autoridades públicas desonestos estão utilizando o foro privilegiado para ficarem à sombra da impunidade. Assistimos a todo tempo em rede nacional de televisão, nos jornais, nas rádios, nas redes sociais escândalos e mais escândalos de políticos e autoridades envolvidas em crimes, principalmente de corrupção, como acontece na mega operação lava jato, e nada de efetivo acontece, pois parecem estar acima do bem e do mal,  a lei parece não conseguir alcançá-los dando uma impressão angustiante e desoladora que tais criaturas são intocáveis!

O que merece ser indagado ao leitor: o que os crimes comuns, crimes próprios de marginais tem a ver com a nobre função pública que essas pessoas exercem em interesse próprio e não da coletividade?   Nada!  Absolutamente nada, ao revés, tais condutas são antagônicas com  as nobres funções públicas que exercem.

O foro por prerrogativa de função tem servido como proteção para os maus políticos e pessoas desonestas que exercem a função pública  com interesses escusos, e não republicanos, objetivando  o enriquecimento ilícito através de cargos públicos e depois correm atrás de um mandato parlamentar, conseguindo à custa de  dinheiro, e muito dinheiro, que jamais vão recuperar com seus “modestos” salários parlamentares, tudo para garantir sua impunidade, pois sabem que dificilmente serão julgados.

A dura realidade é que os Tribunais superiores, principalmente o STF e STJ, não possuem condições estruturais, a começar de pessoas, para processar e julgar tantos processos contra  tantos infratores que detêm hoje o foro por prerrogativa de função.

A comprovação de tal assertiva foi o julgamento da ação 470, denominada de mensalão. Quantos anos o STF levou para instruir e julgar um único processo? E quantos meses  durou o julgamento? Sem falar que muitos outros casos importantes ficaram sem ser apreciados em função do julgamento da referida ação. Essa é a prova cabal que o foro por prerrogativa de função é, na prática, inviável e ultrapassado, além de tudo isso, colabora  para a certeza da impunidade.

Esse entrave criado pelo enorme volume de processos impede os Tribunais de cumprirem suas funções estabelecidas na Constituição de processar e julgar originariamente parlamentares, Presidentes, Governadores, Ministros, Secretários de Estado e tantos outros, levando a certeza de que a grande maioria acaba se beneficiando dessa situação caótica, fazendo com que inúmeros processos criminais sejam lançados na cova rasa do esquecimento e conseqüente  prescrição, prêmio maior para os corruptos de carteirinha.

Enquanto isso, para a maioria dos mortais, a realidade é completamente outra, a população carcerária cresce desordenadamente, a superlotação dos presídios acentuada pelos criminosos menores, inclusive “ladrões de galinha”, somatizada pela falência  do sistema prisional brasileiro, parece uma bomba relógio que vem explodindo em todo o País com rebeliões, sem falar que muitos presídios já se transformaram no quartel general do crime organizado. A maior parte da população amarga com o desemprego, a lamentável e trágica volta da inflação, não temos um sistema de saúde decente, centenas de pessoas morrem nas filas dos hospitais públicos por falta de condições básicas  de atendimento, além das deficiências estruturais; minguam vagas nas escolas públicas, pois o dinheiro foi para o ralo da corrupção, que consome aproximadamente 70 bilhões por ano, segundo estatísticas. Poucos vão para a cadeia, e o pior é que a maior parte do dinheiro não é recuperado, com exceção do que estamos assistindo hoje na lava jato. As escolas particulares ficam cada vez mais caras, pouco acessíveis à maioria da população. As crianças abandonadas entregam-se as drogas, crescendo subnutridas e revoltadas, tornando-se adultos doentes e miseráveis que formam os bolsões de miséria que infelicitam o País.  Hoje o crack está matando a juventude, destruindo famílias, nem mesmo os traficantes o querem,  sem falar que a criminalidade está tão alta, que a violência não encontra mais parâmetros.

Na Suécia, um dos países mais desenvolvidos do mundo, não tem foro privilegiado, os juízes não tem imunidade e nem privilégios,  e nem os políticos, todos respondem pelos seus atos e infrações penais como cidadãos comuns, são julgados por juízes.

Hoje estamos vivendo um momento de grandes transformações e mudanças, já está  mais do que comprovado que o foro por prerrogativa de função está obsoleto, ultrapassado e ineficiente, e será um grande passo para o País acabar com o Foro privilegiado, todos devem  ser julgados pelo juízo comum,  independente de cargo ou função,  o que seria um bom começo para o fim da impunidade, do corporativismo nefasto, e a consolidação dos verdadeiros ideais democráticos, fazendo valer a máxima constitucional de que realmente “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”!

*Alex Neder é advogado criminalista e consultor jurídico.