Fatos e direitos das vítimas do acidente com o Césio-137

*Fernanda Gonçalves do Carmo Moreira

No ano de 1972, o Instituto Goiano de Radioterapia – IGR, na época com sede na Avenida Paranaíba, nº 1.587, no Setor Central, em Goiânia-GO, adquiriu uma bomba de Césio-137, a fim de utilizá-la em tratamentos médicos por meio de um aparelho de radioterapia.

Ocorre que este terreno onde o IGR exercia suas atividades era pertencente à Santa Casa de Misericórdia, que o vendeu ao Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás – Ipasgo. Com esta venda em 1985, o IGR foi pressionado a deixar o local de sua antiga sede, transferindo-a para outro endereço e deixando o local abandonado, juntamente com o aparelho de radioterapia.

O prédio passou a ser um abrigo para miseráveis, sendo que em 04 de maio de 1987 iniciou-se a demolição parcial do imóvel, sem qualquer aviso sobre a existência da antiga bomba de Césio-137 no local.

Em setembro desse mesmo ano, especificadamente no dia 13, dois “catadores de papel”, Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves, entraram no prédio abandonado e levaram consigo entre outros materiais a bomba de Césio-137, com o intuito de posteriormente darem uma destinação comercial ao objeto.

A bomba de Césio fora então partida em dois pedaços, um menor de cerca de 120 quilos, e outro maior de cerca de 300 quilos, sendo que a menor fora levada por Roberto para a sua residência, onde foi posteriormente violada a base de marretadas, e a maior deixada no local, sendo posteriormente pega por outras duas pessoas que a levaram para o ferro-velho de propriedade de Devair Alves Ferreira, localizado na Rua 26-A, Setor Aeroporto.

Após, Devair levou a peça do ferro-velho para a sua residência, localizada no Setor Norte Ferroviário, e maravilhado com a coloração azul intensa emitida pelo elemento radioativo chamou familiares, vizinhos e amigos para terem contato com o objeto, inclusive distribuindo pedaços deste.

Diante do contato direto com a substância radioativa os problemas de saúde começaram a surgir, com maior gravidade na filha de Devair Leide das Neves, e, a par deste quadro, no dia 28 de setembro de 1987, a mulher de Devair, levou o material radioativo para a Vigilância Sanitária do Estado, fazendo o transporte em um ônibus coletivo, contaminando um número indefinido de pessoas.

Neste ínterim, médicos do Hospital de Doenças Tropicais do Estado suspeitaram sobre o número de doentes internados com lesões que poderiam ter origem por contaminação radioativa e sugeriram que fosse realizada uma investigação no prédio da Vigilância, no dia 29 de setembro de 1987, em que foi constatado por meio de medidor apropriado altíssimo nível de radiação no local.

Com isso o alarme inicial oficial fora dado, e na ocasião foram designados bombeiros e policiais militares sob a informação de que deveriam conter possível vazamento de gás tóxico, ou seja, estes funcionários públicos dirigiram-se aos locais contaminados sem qualquer tipo de estratégia ou proteção específica definida para a contenção do que realmente havia acontecido.

A omissão era proposital e, tinha a intenção de supostamente evitar o pânico na população, mas os danos e prejuízos advindos dessa conduta do Poder Público revelaram-se extremamente nefastos, sobretudo para os Bombeiros e Policiais militares, grupo de frente da descontaminação e evacuação.

Logo depois os motivos reais do isolamento foram conhecidos pela mídia local, nacional e mundial, e deslocaram-se técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN para Goiânia, onde fora realizado um trabalho de isolamento e contenção das áreas afetadas, sendo identificados ao todo cerca de sete focos principais.

Várias pessoas foram contaminadas também na ação corretiva do acidente, afinal, a contaminação por radioisótopo é facilmente transmitida pelo contato humano, fazendo com que haja uma propagação em cadeia extensa caso não exista um controle e preparo para manuseio do rejeito radioativo.

Após este relato fático acerca das minudências que envolveram o Acidente com o Césio-137 em Goiânia-GO, mormente considerando as falhas na prevenção e na contenção da contaminação por radiação, tem-se as premissas básicas para que se possa entender a fundamentação do direito das vítimas desse triste evento.

A nossa atual Magna Carta traz no artigo 37, §6º a determinação de responsabilização objetiva das pessoas jurídicas de direito público interno e as de direito privado prestadoras de serviços públicos, ressalvando o direito de regresso contra os causadores dos danos, desde que tenham agido com culpa ou dolo.

Acerca das peculiaridades da Teoria da Responsabilidade Objetiva, cumpre esclarecer alguns pontos controversos. O primeiro diz respeito à forma como a conduta omissiva deva ser encarada em matéria de responsabilidade Estatal, o segundo relaciona-se com a Teoria do Risco Integral para Danos Nucleares, supostamente inaugurada pelo art. 21, inciso XXIII, alínea “d” da Constituição Federal promulgada em outubro de 1988.

Sobre a responsabilidade do Estado por ato omissivo nota-se que até o presente momento existe forte controvérsia a respeito da aplicação da Teoria da Responsabilidade Objetiva nestes casos, isso porque os danos decorrentes de uma conduta omissiva do Estado sempre estarão correlacionados com ausência do serviço público, ou seja, o dano imediato sempre será decorrente de fato de terceiro ou fato da natureza.

Por outro lado, com relação ao segundo ponto peculiar sobre a Teoria da Responsabilidade Objetiva do Estado e que diz respeito aos danos nucleares propriamente, observa-se que há uma forte corrente que sustenta que por se tratar de atividade ultra perigosa desenvolvida pela Administração, o ente Estatal deve assumir sua responsabilização independente de culpa, seja por conduta omissiva ou comissiva, sendo que, inclusive, alguns admitem que este seria o caso de não haver causa excludente, aplicando a Teoria do Risco Integral.

Além disso, necessário pontuar que o Estado desenvolveu alguns programas de apoio às vítimas do Acidente e, ainda que de maneira precária, assumiu a criação de uma Fundação, hoje Centro de Assistência aos Radioacidentados, responsável por dar assistência médica a um reduzido número de vítimas.

Ainda, tanto a União quanto o Estado de Goiás, editaram legislações concedendo as taxadas de pensões de clemência (o Estado de Goiás editou em 1989 a Lei nº 10.977 e em 2002 a Lei nº 14.226, já a União editou a Lei nº 9.425 no ano de 1996), na qual arcavam com um diminuto valor mensal para suposto auxílio dos radioacidentados.

Ocorre que, em vista de todos os danos ocasionados à sociedade, a assistência proporcionada pelo Poder Público é bastante distante do que seria considerada uma indenização justa para as vítimas, e, além disso, as poucas medidas criadas pelo governo não foram devidamente divulgadas, e atendem uma parcela ínfima da população acometida por esse evento danoso.

Necessário ressaltar, inclusive, que os efeitos da exposição à radiação podem demorar longo período para se manifestar, e que várias vítimas estão sendo acometidas por inúmeras doenças ainda nos dias de hoje.

Dessa forma, conclui-se que mesmo após 34 anos dos trágicos fatos ocorridos, as informações referentes ao acidente com o acidente com o Césio-137 em Goiânia não podem deixar de ser divulgadas, pois, ainda hoje muitas vítimas não conhecem seus direitos, e carecem de assistência para tratamento médico das inúmeras doenças manifestadas pelo contato com a radiação, uma vez que tal contato se deu muitas vezes de forma indireta, por exemplo, por filhos e cônjuges de pessoas que trabalharam na contenção da radiação, e anos depois estão sendo acometidos por inúmeras doenças.

*Fernanda Gonçalves do Carmo Moreira é advogada graduada na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, e pós-graduada em Direito Tributário e Processual Tributário na Escola Paulista de Direito e Universidade Federal de Goiás, atuando na área jurídica nas regiões de São Paulo e Goiás. Iniciou sua carreira no Estado de São Paulo no escritório Neumann Salusse & Marangoni Advogados, posteriormente prestou consultoria tributária para o Grupo Pão de Açúcar, Whirlpool S/A e Decathlon Brasil entre outras empresas, e atualmente é sócia proprietária do escritório Gonçalves & Alves Advocacia na cidade de Goiânia. O escritório Gonçalves & Alves atua principalmente em demandas empresariais (tributário, contratual, trabalhista e assessoria jurídica em geral), e em demandas para pessoas físicas em matérias relacionadas as áreas do direito do consumidor, trabalhista, previdenciário, cível, cobrança e em apoio às vítimas do acidente do Césio-137. E-mail: contato@goncalvesealves.com.br.