Dúvidas sobre a impugn(ação?) de crédito em recuperação judicial

*Leonardo Honorato Costa

O título desse artigo é sugestivo ao afanoso tema a que se dispõe enfrentar: em processos de execução coletiva (recuperação de empresas e falência), os incidentes de habilitação, divergência e impugnação de crédito prestam-se para constituir/desconstituir créditos ou apenas para verificá-los? Em outras palavras, é pressuposto para a utilização dos incidentes a existência prévia de um título executivo ou podem aqueles serem utilizados para a sua formação, ou até mesmo para sua desconstituição?

Em verdade, conquanto o título do artigo possa indicar dúvida quanto à natureza jurídica dos procedimentos (se ação ou incidente), o que se pretende instigar é a possibilidade ou não de tal constituição acontecer em tais incidentes, pois é inegável que essa – incidente – é a natureza jurídica mais defendida.

O primeiro ponto a se discutir, portanto, é justamente se a constituição ou a desconstituição de um título executivo pode ocorrer dentro da estreita via de um incidente, ou se tal fenômeno jurídico é exclusivo das ações judiciais, de cognição sabidamente mais exauriente.

Pois bem.

Quanto a esse ponto, há duas vertentes de pensamento.

Para a primeira delas, os instrumentos processuais previstos na Lei 11.101/2005 (LRF) têm o objetivo precípuo – e limitado – de submeter ao juízo competente a análise da correção ou incorreção da classificação dos créditos realizada pelo Administrador Judicial, conforme atribuição a ele conferida pelo artigo 7° da mesma lei, nada além disso.

Vale dizer, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos documentos que lhe forem apresentados pelos credores, o Administrador Judicial verificará e classificará o crédito, sendo essa sua decisão passível de revisão pelo Judiciário, nos termos do procedimento previsto no artigo 8° da LRF, ocasião em que o juízo competente deve, com base na documentação apresentada na impugnação, verificar se o Administrador Judicial atuou corretamente ou não.

Não se trataria, assim, de instrumento processual destinado a constituir ou revisar negócios jurídicos, ou, menos ainda, desconstituí-los. É o que se pode abstrair dos seguintes precedentes: no TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.03.116837-0/001, no TJRS, Apelação Cível nº 0273266-36.2017.8.21.7000, no TJDFT, Agravo de Instrumento nº 0716776-38.2018.8.07.0000. Colacionemos uma das ementas, a título ilustrativo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. FALÊNCIA. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. DUPLICATA MERCANTIL. AUSÊNCIA DE ACEITE. NECESSIDADE DE NOTA FISCAL, COMPROVANTE DE ENTREGA DA MERCADORIA E PROTESTO DE TÍTULO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DEVIDOS EM RAZÃO DE APRESENTAÇÃO DE IMPUGNAÇÃO. DECISÃO MANTIDA.

  1. A duplicata mercantil, para ser exigível judicialmente, deve ser acompanhada ou de aceite ou de protesto por falta de aceite, nos termos do art. 15 da Lei 5.474/68 (Lei de Duplicata).
  2. Para a habilitação do crédito, é imprescindível a formação do título executivo que consubstancia a existência da dívida. A Lei de Falências (11.101/05) estabelece as regras e condições para habilitação judicial dos créditos, que devem ser, no caso, conjugadas com o art. 15, inciso II, da Lei de Duplicatas, que estabelece requisitos para a cobrança judicial de duplicata.
  3. Se não há duplicata de fatura com aceite, mostra-se necessária a apresentação, concomitante, de nota fiscal da fatura, comprovante da entrega da mercadoria e documento relativo ao protesto de título, sem tais documentos o título não é executável e, por conseguinte, não é passível de habilitação, nos termos do art. 83 da Lei de Falências.
  4. No tocante aos honorários de sucumbência, esses são devidos em razão da apresentação de impugnação na habilitação crédito.
  5. Recurso conhecido e desprovido.

(TJDFT, 5ª Turma Cível, AI nº 0716776-38.2018.8.07.0000, Rel. Des. Sebastião Coelho, julgado em 13 de fevereiro de 2019) sem grifo no original

Em contraponto a tal entendimento, há vertente que defenda o caráter cognitivo e contencioso dos incidentes processuais em comento, justificando em tais caráteres a possibilidade de constituição e desconstituição de créditos em tais incidentes, mesmo sem a existência prévia de um título executivo. A título exemplificativo, dessa segunda vertente de pensamento, destaque-se o REsp 992.846/PR, com a seguinte ementa:

DIREITO FALIMENTAR. FALÊNCIA REGULADA PELO DECRETO-LEI N. 7.661/1945. PROCEDIMENTO DE HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. DESNECESSIDADE DE EMBASAMENTO EM TÍTULO EXECUTIVO.

  1. O requerimento de habilitação de crédito não precisa estar lastreado em título executivo, em razão do caráter cognitivo e contencioso do seu procedimento.
  2. O contrato de abertura de crédito, a despeito de não ser considerado título executivo (Súmula n. 233 do STJ), é documento hábil a embasar requerimento de habilitação de crédito em processo falimentar.3. Recurso especial conhecido em parte, mas desprovido.

(STJ, 4ª Turma, REsp nº 992.846 – PR, Rel. Min, Antônio Carlos Ferreira, julgado em 27 de setembro de 2011) sem grifo no original

Maduros quanto ao primeiro ponto, passemos, doravante, ao segundo ponto de discussão: há cognição nos incidentes da LRF? Ou mais, há contraditório?

Nesse ponto, ao menos quanto a dois dos procedimentos em análise há que ser negado tal caráter: as habilitações e divergências de crédito, perante o Administrador Judicial, não possuem cognição judicial, de modo que, quanto a elas, há que ser negada a possibilidade de constituição e desconstituição de créditos, pois tais fenômenos dependem, ao nosso sentir, de cognição judicial, não sendo crível que aconteçam em via administrativa.

A insegurança jurídica, portanto, restringe-se à habilitação retardatária ou impugnação de crédito, incidentes processuais que acontecem perante um juízo investido de Jurisdição.

Quanto a tais incidentes, a LRF prevê um rito próprio com prazo de contestação e indicação de provas (art. 11), réplica (art. 12) e prevendo possibilidade, inclusive, de ser designada audiência de instrução (art. 15, IV). São esses os argumentos de quem defende a existência de cognição e contraditório, e, portanto, a possibilidade de constituição e desconstituição de crédito em tais incidentes.

A questão, no entanto, como abordado, não possui consenso doutrinário ou jurisprudencial, muito por conta da ausência de uma melhor discriminação na legislação, falha em abordar expressamente os pontos discutidos nesse artigo.

Sabendo-se, no entanto, da dificuldade de tal insegurança jurídica – sobre um tema de suma relevância para nortear a conduta dos credores em processos de crise empresarial – ser resolvida por via de aprovação de projeto de lei que acrescente previsões expressas na LRF, confia-se, ao menos, na breve afetação para julgamento, por parte do colendo Superior Tribunal de Justiça, de recursos especiais repetitivos que tenham por objeto o tema em análise, definindo-se a regra a ser aplicada e outorgando, com isso, a segurança jurídica que o tema exige.

*Leonardo Honorato Costa é sócio do Gonçalves, Macedo, Paiva & Rassi Advogados, Master of Laws em Direito Empresarial pela FGV/RJ, Pós-MBA em Governança Corporativa pela FGV/RJ e Coautor do livro Direito Empresarial: novos enunciados da Justiça Federal, editora Quartier Latin.