Cédula de produto rural: a função social e o estímulo ao crédito agrícola

*Leonardo Sobral Moreira

Durante os anos 70, o desenvolvimento do setor agrícola no Brasil se constituiu em políticas públicas de grande interferência governamental, garantido por ferramentas públicas de financiamento. Diante disso, os títulos de financiamento rural estabelecidos pelo Decreto-Lei n. 167/1967 representaram uma lenta evolução, percebida no início da década de 1980 em direção à política agrícola com financiamento privado. Assim, as Cédulas de Crédito Rural (CCR), dispostas pelo Decreto-Lei, surgiram com o intuito de suprir as necessidades das instituições financiadoras da atividade e do empreendimento rural fomentado.

Com relação às cédulas, o emitente toma o empréstimo em detrimento da promessa de pagamento, bem como das garantias constantes no título de crédito. Nesse sentido, a promessa de pagamento é baseada em dinheiro e os recursos são utilizados para os fins contratados, uma vez se tratar de um crédito vinculado a uma finalidade.

Assim, no entendimento doutrinário, segundo Carlos Bellini Júnior e Marcelo Franchi Winter, a reformulação da política agrícola se deu com o crescimento do financiamento privado, “tornou possível a construção e a concessão do crédito, por meio do mercado financeiro e de capitais voltado para o desenvolvimento de uma agricultura competitiva e moderna, que estimula investimentos diretos no setor, em particular de bancos privados e investidores estrangeiros”.

Ademais, para Roberto Rodrigues, os anos 90 foi de suma importância para esse setor, resultando em um Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio, caracterizado pelo capital privado, destinado ao financiamento da agricultura comercial e da agroindústria, bem como, o surgimento de uma política pública voltada para a renegociação de dívidas do produtor rural, a definição do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a criação de títulos de crédito do agronegócio.

Nesse sentido, conforme Bellini Júnior e Winter, a Lei n. 8.929/1994 que instituiu a Cédula de Produto Rural (CPR) pretendeu considerar esse título como “instrumento-base de toda cadeia estrutural do financiamento do agronegócio, definida como título de crédito, líquido e certo, representativo de promessa de entrega de produtos rurais, de emissão exclusiva dos produtores rurais, suas associações e cooperativas”.

Analisando por esse prisma, a referida cédula é um título de crédito que garante a entrega da coisa esperada e o pagamento ao agropecuarista, ou seja, as CPR foram criadas para respaldar o produtor rural em relação às promessas de pagamento em dinheiro, objeto das Cédulas de Crédito, que se mostrava bastante temerária diante da projeção dos preços agrícolas ante a uma inflação crescente. Logo, passou a ser possível o cumprimento da obrigação com a entrega de produtos, e não somente em dinheiro.

Como se pode observar, para entender o contexto, é importante destacar a doutrina de Haroldo Malheiros Duclerv Verçosa e Nancy Gombossy de Melo Franco, na qual as próprias CPR foram instituídas como alternativa para concessão de crédito ao agronegócio, em que o devedor se compromete com uma obrigação que se traduz na operação de entrega de dinheiro ou de mercadorias.

É de se ressaltar também que, o surgimento de títulos de crédito foi uma medida tomada com o objetivo de munir os agentes do agronegócio com ferramentas para captar recursos necessários ao desenvolvimento do setor.

Isso porque, através da criação da CPR, foi colocado à disposição do mercado agrícola um instrumento de financiamento simples, eficaz, com baixo custo operacional e com garantias confiáveis para os contratantes.

Além disso, é importante entender que as CPR possuem bastante semelhança em relação às CCR, sobretudo por serem títulos líquidos, certos e exigíveis, bem como as garantias e a obrigatoriedade da inscrição no Cartório de Registro de Imóveis para ter eficácia contra terceiros.

Conforme já compreendido, cumpre reforçar que o título possui um caráter fomentador da atividade rural, colocando ao dispor do produtor rural, um instrumento rápido e eficaz de incentivo ao plantio, garantido pela própria safra, levando em consideração a oscilação do preço dos produtos em se tratando de mercado agrícola.

Nessa linha de entendimento, registra-se também, a função social da CPR para viabilizar o desenvolvimento do agronegócio, sobretudo em relação à organização das atividades de mercado, destacando as palavras de Winter “desde a fabricação e fornecimento de insumos, a produção, o processamento e o armazenamento, até a distribuição para o consumo interno e internacional de produtos de origem agrícola ou pecuária (…)”.

A respeito do alcance do contexto da função social atribuída ao título, destaca-se o que leciona o art. 18 da Lei n. 8.929/1994, que dispõe:

Art. 18. Os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou seqüestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cumprindo a qualquer deles denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência, ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão.

Vale dizer que o artigo 69 do Decreto-Lei n. 167/1967, esclareceu a natureza de impenhorabilidade, bem como as razões que a justificavam:

Art 69. Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de crédito rural não serão penhorados, arrestados ou seqüestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão.

Ou seja, como podemos observar, para entender a natureza de impenhorabilidade de bens vinculados a CPR, o próprio Superior Tribunal de Justiça, contribui para a formação desse entendimento, senão vejamos:

RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. SISTEMA PRIVADO DE FINANCIAMENTO DO SETOR AGRÍCOLA. CÉDULA DE PRODUTO RURAL. TÍTULO DE CRÉDITO. LEI N. 8.929/1994. IMPENHORABILIDADE LEGAL DO BEM VINCULADO À CPR QUE PREVALECE MESMO DIANTE DA PENHORA QUE GARANTE O CRÉDITO TRABALHISTA. PRELAÇÃO JUSTIFICADA PELO INTERESSE PÚBLICO.

  1. Não há falar em omissão ou contradição do acórdão recorrido se as questões pertinentes ao litígio foram solucionadas, ainda que sob entendimento diverso do perfilhado pela parte.
  2. O Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio identifica-se pelo patrocínio privado da agricultura comercial profissionalizada e da agroindústria, assim como por uma política pública de renegociação das dívidas dos agropecuaristas e pela criação de bancos especializados e de títulos de crédito do agronegócio.
  3. A Cédula de Produto Rural (Lei n. 8.929/1994) é instrumento-base do financiamento do agronegócio, facilitadora da captação de recursos. É título de crédito, líquido e certo, de emissão exclusiva dos produtores rurais, suas associações e cooperativas, traduzindo-se na operação de entrega de numerário ou de mercadorias, com baixo custo operacional para as partes.
  4. Tendo em vista sua função social e visando garantir eficiência e eficácia à CPR, o art. 18 da Lei n. 8.929/1994 prevê que os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cabendo a estes comunicar tal vinculação a quem de direito.
  5. A impenhorabilidade criada por lei é absoluta em oposição à impenhorabilidade por simples vontade individual. A impenhorabilidade absoluta é aquela que se constitui por interesse público, e não por interesse particular, sendo possível o afastamento apenas desta última hipótese.
  6. O direito de prelação em favor do credor cedular se concretiza no pagamento prioritaritário com o produto da venda judicial do bem objeto da garantia excutida, não significando, entretanto, tratamento legal discriminatório e anti-isonômico, já que é justificado pela existência da garantia real que reveste o crédito privilegiado.
  7. Os bens vinculados à cédula rural são impenhoráveis em virtude de lei, mais propriamente do interesse público de estimular o crédito agrícola, devendo prevalecer mesmo diante de penhora realizada para garantia de créditos trabalhistas.
  8. Recurso especial provido.

(REsp 1327643/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2019, DJe 06/08/2019)

Outrossim, a impenhorabilidade criada por lei e constituída por interesse público é absoluta, em oposição à impenhorabilidade por interesse particular. Logo, é possível apenas o afastamento da impenhorabilidade por vontade individual.

Portanto, os bens vinculados à CPR são impenhoráveis em virtude de lei, por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador de garantia real, mais propriamente diante do interesse público de estimular o crédito agrícola, bem como esse setor de enorme relevância para a economia do país.

*Leonardo Sobral Moreira é advogado, atuante na área de Direito Civil, Cooperativo e Bancário no escritório Rodnei Lasmar Advocacia e Consultoria. E-mail para contato: leo_sobral_@msn.com. Leonardo está no Instagram como @_leonardosobral. 

Bibliografia 

BELLINI JÚNIOR, Carlos; WINTER, Marcelo Franchi. Regime jurídico da cédula de produto rural (CPR) e alguns aspectos controversos. In: Direito do agronegócio: mercado, regulação, tributação e meio ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 421.

RODRIGUES, Roberto. Depois da Tormenta. São Paulo: Edição do autor, 2008, p.101.

VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerv e MELO FRANCO, Nancy Gombossy de. Crédito e títulos de crédito na economia moderna: uma visão focada na Cédula de Produto Rural – CPR. In: Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. v. 45, n. 141, pp. 96-141, 2006.

WINTER, Marcelo Franchi. Cédula de produto rural e teoria da imprevisão. In: Revista de direito bancário e do mercado de capitais, v. 15, n. 57, pp. 171-199, 2012.