Novas leis às vésperas da virada

*Danúbio Remy

Em véspera de fechar 2021, duas novas normas sancionadas pelo presidente da República causam insegurança jurídica na estrutura administrativa dos entes federativos. A Lei 14.276 de 27 de dezembro de 2021 cria retórica do “rateio” e antinomia da Lei do Fundeb. E, já na virada do ano, o decreto 10.922 de 30 de dezembro de 2021 atualizou os valores da Lei 14133/2021, implicando as atualizações dos contratos e licitações em curso.

É preciso prudência e cautela administrativa no manuseio repetino das duas normas, a fim de salvaguardar os interesses da administração, pois mexem frontalmente com o intesse e o erário público.

O verbo transitivo direto e bitransitivo rateiar por mais que não tenha qualquer denotativo jurídico, esse novo instituto jurídico almejado recentemente, tem o significativo sincrético de separar ou repartir de maneira proporcional ou de maneira justa entre as partes, quais sejam, os profissionais da educação que agora ao apagar das luzes do dia 28 de dezembro foram estendidos para todos os profissionais ativos, inclusive os de apoio técnico administrativo.

Ora: não tendo a Administração Municipal atingido a porcentagem mínima de investimentos de 70% (setenta por cento), ao pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício, não poderá realizar qualquer forma de rateio, mas, apenas poderá verificar o enquadramento dos seguintes permissivos com a a possibilidade de cumprir metas de planejamento.

A principal dúvida decorre do §2°, especificamente em relação à possibilidade ou não de utilização do instrumento do abono/rateio, para a utilização dos 70% obrigatórios.

A redação indica que os recursos poderão ser aplicados para reajuste salarial sob a forma de bonificação, abono, aumento de salário, atualização ou correção salarial.

Entre “poderão” e o “dever-ser”, existe uma larga escala a ser estudada, em cumprimento estrito ao princípio da legalidade. Em nenhum momento afirma-se que é permitida a realização livre de abono, tão somente para utilizar os recursos, mas sim é permitida a realização de abono/rateio com vistas a fazer reajuste salarial.

É temerária, infundada e nefasta a interpretação extensiva de dispositivo legal que permite a utilização de significativos recursos, sem que:

Destaca-se que a Administração Pública baseia-se, além dos princípios previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal, pelo planejamento, prudência e segurança jurídica.

Até 31 de dezembro de 2.021, existe Lei Complementar Federal (173/20), que proíbe a realização de qualquer despesa permanente com pessoal, inclusive no sentido de criar vantagens do tipo abono/rateio.

Segundo o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás, a utilização do saldo financeiro de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação-FUNDEB para pagamento da remuneração dos profissionais da educação básica em efetivo exercício deve seguir, em âmbito municipal, a necessidade e possibilidade individualmente apresentada pelo ente, dentro das hipóteses não proibidas pelo art. 8º da Lei Complementar nº 173/20, quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou decorrente de determinação legal anterior a calamidade, bem como, as sugestões exemplificativas contidas no Caderno com as Perguntas Frequentes sobre o FUNDEB, , para alcançar o mínimo de 70% do FUNDEB a ser aplicado naquelas despesas.

A nova lei, publicada ao apagar das luzes resolve sim, algumas questões derivadas da aplicação dos índices do FUNDEB que, ao melhor juízo, possibilita ajustes ao pagamento dentro dos 70% de todos os profissionais da educação, que não apenas aqueles em sala de aula – e por outro lado, permite os ajustes salariais, aumento de salário, atualização ou correção salarial.

Porém, a administração pública é dinâmica, e requer dos gestores públicos que – por boa-fé administrativa – sejam dinâmicos nos enfrentamentos das questões, alçando a finalidade pública.

Pode o gestor do FUNDEB, sob a égide da nova lei e a insegurança jurídica, ousar administrativamente e avançar na questão para utilização dos recursos de superávit para prestar como forma de abono ou, o que chamam empiricamente de “rateio” para os trabalhadores da educação.

Ora: a contradição do fenômeno provocado ao cerne da questão, criou o efeito chamado “antinomia jurídica”, pois foi gerado um conflito entre normas e: para dificultar ainda mais – normas de mesma hierarquia e especialidade. O que muda é apenas o critério cronológico.

Assim: O critério cronológico tem por fundamentado o artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que regula que norma posterior revoga a anterior: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

A nova lei, de fato, é incompatível com a Lei 173/2020. Isso porque na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, decriar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade.

Por outro lado a nova Lei – que regulamenta a utilização dos recursos do FUNDEB rege que “§ 2º Os recursos oriundos do Fundeb, para atingir o mínimo de 70% (setenta por cento) dos recursos anuais totais dos Fundos destinados ao pagamento, em cada rede de ensino, da remuneração dos profissionais da educação básica em efetivo exercício, poderão ser aplicados para reajuste salarial sob a forma de bonificação, abono, aumento de salário, atualização ou correção salarial. (Incluído pela Lei nº 14.276, de 2021)”.

Assim, tem-se que o terceiro e último critério a ser analisado na antinomia jurídica é o da especialidade o qual prescreve que a norma especial prevalece sobre a geral. Este critério também encontra-se no artigo 2º, § 2o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.

O princípio da Especialidade tem por finalidade evitar o bis in idem, sendo certo que a comparação entre as normas será estabelecida in abstracto.

O TCM/GO, na Consulta 015/2021 manifestou-se no sentido da ilegalidade e inaplicabilidade de Leis feitas no período de pandemia com vistas a realizar abono/rateio.

O MP/GO, por meio do Ofício Circular 052/2021, datado de 16 de novembro de 2.021, manifestou-se contrário à realização de rateio. Evidente: é uma anticrese admistrativa dividir superávit a fim de cumprir metas fiscais.

Insta salientar que a oficiação do Ministério Público, seguindo orientação do MPF/ Núcleo da Educação gera o critério de “dolo genérico” do gestor, quando do descumprimento de norma legal.

A premissa básica é simples. A nova Lei, pretendendo substituir-se às leis municipais, cria, de per si, uma gratificação de “rateio” dos recursos do FUNDEF e tal rateio de valores entre servidores não se confunde e nem promove o desenvolvimento e manutenção da educação e, muito menos a valorização do magistério.

Diante de aparente antinomia existente entre a norma constitucional (art. 212-A) e norma legal (art. 8º da LC n. 173/2020), ou seja, no conflito entre um dever constitucional versus dever infraconstitucional, o ordenamento jurídico preconiza o uso do critério hierárquico (Lex superior derogat legi inferiori) na solução do conflito.

Tal critério define que em um conflito entre normas de diferentes níveis, a de nível mais alto, qualquer que seja a ordem cronológica, terá prevalência em relação à de nível mais baixo. Portanto: a decisão de não cumprir a Lei 173/2020 em virtude de cumprir a Lei do FUNDEB em seu artigo 26, que possui um autorizativo constitucional de cumprimento de índices fiscais – é uma decisão plausível do gestor, que cabe certa sustentação jurídica.

Afinal: não cumprir as metas constitucionalmente estabelecidas é um evento administrativo tão danoso, quanto realizar o rateio dos recursos que “só podem ser gastos com pessoal da educação”. Assim, a Lei Municipal é o autorizativo que permite o pagamento de bonificação especial aos trabalhadores da educação.

Existem municípios, inclusive, que regulamentam por Decreto: algo nada republicano no sistema federativo que possuem normas legislativas claras – “não se regulamenta distribuição de dinheiro por decreto”.

O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que os legislativos locais devem autorizar, através de leis próprias, a forma de se proceder ao rateio. Esta é a única exigência jurídica para se efetivar o rateio. Porém, o entrave da 173/2020 deve ser balizado pelo gestor, sendo a única recomendação do órgão de controle externo remar no sentido contrário.

Da mesma sorte: utilizar-se do Decreto 10.922/2021 para alterar situações de já consolidadas e certames licitatórios em curso gera uma antinomia jurídica a qual causa insegurança jurídica ao gestor. Isso porque, os atos administrativos não devem retroagir, salvo para salvaguardar a administração.

Entretanto, reconhece-se que os novos valores, atualizados aos índices que acompanham a volumosa inflação, traz o indicativo de desburocratização e facilitação no processo de compras públicas, que por muitos anos sofreu os entraves e imperfeições causadas pela originária 8666/92.

A recomendação dos melhores entendedores do direito administrativo é que não se pode mudar o objetivo e a urgência dos novos instrumentos normativos para finalidade diversas das que foram instruídas.

*Danúbio Cardoso Remy Romano Frauzino é advogado, gestor público, mestre em Ciência do Direito pela Universidade de Lisboa, pós-graduado em direito público e administrativo pela Universidade Federal de Goiás.