A reinvenção da roda

*Marcelo Bareato 

Não é de hoje que, em época de eleição, vemos a edição de leis que, aos olhos menos atentos, indicam que nosso legislador está preocupado com o cidadão e com os perigos que nos cercam.

Todavia, se nos debruçarmos de forma mais detida sobre os textos dessas “leis”, veremos que, mais não são, do que repetição daquilo que já existia ou simplesmente um amontoado de ideias não adequadas a nossa forma de Estado Democrático e, por isso mesmo, passarão cerca de 5 ou mais anos até que tenhamos uma perspectiva de como aplicá-las aos casos concretos. Nesse tempo, vamos testando decisões sobre decisões e buscando dos nossos tribunais superiores, a uniformização de jurisprudências, a fim de que possamos alcançar algum tipo de provimento jurisdicional.

De per si, já temos o diferencial comparativo com outros Estados Democráticos que, de fato, se preocupam com a aplicação e funcionabilidade de uma nova lei ou, simplesmente, do complemento de uma lei existente. Nesses Estados, a “nova lei” é pensada durante anos, quando promulgada passa por um período de conhecimento e adaptação da população cuja média é de 1 ano, para depois estar à disposição do judiciário e efetivar a sua aplicação e punições.

Dito isso, trataremos aqui de dois exemplos claros de como editamos leis de forma despropositada e falando mais do mesmo. Vejamos:

1 – Lei n.º 14.344/2022 – apelidada de “Lei Henry Borel”:

Como primeira alteração, vemos o artigo 226 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja redação era: “Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal”.

Com a Lei Henry Borel, mantivemos o caput nos termos expressos acima e acrescentamos 2 parágrafos, quais sejam:

  • 1º – Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995;
  • 2º – Nos casos de violência doméstica e familiar contra criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

De pronto, percebemos que o legislador trouxe alterações no que concerne apenas ao ECA e também aqueles abrangidos pelo alcance da Lei Maria da Penha. O caput continua a valer para as demais formas, aplicando-se crimes de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/95) quando a pena máxima for de até 2 anos, independente da multa aplicada e sendo possível a aplicação do Sursis Processual, ou suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95), quando a pena mínima não for superior a 1 ano.

Da mesma forma, temos a Lei n º 12.650/2012, portanto previsão legal com cerca de 10 anos, que alterou o artigo 111 do Código Penal, para tratar da prescrição em abstrato (aquela que ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória), no caso de crianças e adolescentes.

Nela o inciso V passou a vigorar da seguinte maneira: “Nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”.

Observem que se trata de regra que contraria o próprio Código Penal, já que a previsão anterior era de que os crimes, de forma geral, tinham o seu termo inicial para a prescrição em abstrato, do dia em que o crime se consumou.

Com a redação dada pela Lei nº 12.650/201 passamos a considerar, no caso de criança e do adolescente, qualquer tempo antes da vítima completar 18 anos ou, caso a ação não tenha sido proposta, a partir dos 18 anos para que a própria vítima exerça seu direito a ação penal.

Como podemos perceber, as falhas são grosseiras e continuam a ocorrer, seja há dez anos atrás, seja no mês de maio desse ano, notadamente quando verificamos, por exemplo, que ao determinar o início do prazo prescricional a partir dos 18 anos se o processo não for iniciado antes, esqueceu-se, o legislador, que na maioria das vezes a pessoa violentada na infância ou na adolescência, desenvolve um bloqueio que a impede até mesmo de lembrar do episódio traumático até que se submeta a um tratamento psicológico, o que pode levar anos para que consiga recobrar a consciência do ocorrido e indicar, criminalmente, o autor e os fatos.

Desta feita, tornar prescritível a partir dos 18 anos, continua sendo um desserviço a cidadania em sede de um dos mais graves e recorrentes crimes da atualidade, o que, por regra, deveria ser imprescritível.

Da mesma forma, ao possibilitar a manutenção do caput do artigo 226 do ECA, permite que o magistrado sentenciante desloque o acontecimento para fora do âmbito da Lei Maria da Penha ou do próprio ECA e aplique punições que fiquem restrita ao campo dos juizados especiais ou da suspensão condicional do processo em casos distintos, seguindo o seu melhor juízo, sua moral e seu conceito de bons costumes;      

2 – Lei nº 7.960/89 e as ADI’s 3360 e 4109:  

A Lei em questão tutela a prisão temporária, ou, como preferem alguns, a prisão para inquérito policial. Sendo uma das espécies de prisão provisória e, somente sendo permitida durante a fase investigativa, com a finalidade específica de manter o investigado preso até o termino das investigações caso não tenha residência fixa ou não forneça elementos necessários à sua identificação, é medida que pode ser renovada por uma única vez e por prazo idêntico aquele que a determinou. Quem pode decretar é a autoridade judicial (juiz), a pedido da autoridade policial (delegado de polícia) ou do Ministério Público, independente do parecer deste último, caso o pedido seja feito pelo Delegado de Polícia.

Todavia, merece nota que o STF, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s) de nº 3360 e 4109, acabou por estabelecer critérios mais rigorosos para a sua decretação, na data de 11 de fevereiro de 2022. Desde então, para o decreto de uma prisão temporária passou a ser necessário demonstrar na representação da autoridade policial ou no requerimento feito pelo Ministério Público, a presença de 5 requisitos concomitantes e cumulativos, quais sejam:

1) – imprescindibilidade para as investigações, constatada a partir de elementos concretos, vedadas meras conjecturas, a sua utilização para averiguação, ou quando fundada no mero fato de o averiguado não possuir residência fixa;

2) – quando houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes previstos no artigo 1º, III da Lei, vedada a analogia ou a interpretação extensiva do rol previsto no dispositivo;

3) – quando for justificada em fatos novos ou contemporâneos que fundamentam a prisão preventiva (artigo 312, § 2º, do CPP);

4) – quando a medida for adequada à gravidade concreta do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado (artigo 282, inciso II do CPP);

5) – não for suficiente a imposição de medida cautelar diversa da prisão, conforme previsão do artigo 319 e 320, do CPP, conforme determinação expressa do artigo 282, § 6º do CPP.

Vejam, caros leitores!

Precisamos esperar 11 anos (2011 até 2022), para que o STF falasse o óbvio, já que em 2011 restou expresso e irrevogável que a prisão preventiva (prisão para o processo penal), era medida extrema e somente poderia ser decretada em último caso.

Em grau de comparação, se a prisão preventiva é medida mais grave e endereçada ao processo, qual seria a lógica de permitir a prisão temporária sem obediência aos requisitos autorizadores da segregação do direito de ir e vir, como estava sendo aplicada até fevereiro de 2022?

E poderíamos citar vários outros casos tais como a recém decisão do STJ, no HC 719.261/SP, publicada no DJe 27.05.22, onde “a invasão de domicílio decorrente de abordagem em que o suspeito apresentou nervosismo não justifica a falta de mandado para o ingresso na residência. 5 Kg de maconha apreendida. Consentimento do morador não comprovado. Ilegalidade da invasão”, ou STJ, no HC 631.995/SP, publicado no DJe 27.05.22, onde houve a decisão de que “não é possível aplicar o princípio da insignificância ao tráfico de drogas, na medida em que se trata de crime de perigo abstrato, sendo irrelevante a quantidade de drogas apreendida em poder do agente”.

No primeiro, temos a inconstitucionalidade da invasão, já no segundo, a decisão é contrária ao que determinou o STF em 2015, quando marcou posição de que o perigo abstrato no crime de drogas não impede a aplicação de pena restritiva de direitos ou que o agente inicie o cumprimento da pena no regime aberto, já que é inconstitucional qualquer outra forma de estipular o início da pena, se não aquele previsto no artigo 33 do Código Penal.

Percebam, Meus Caríssimos que, quando é permitimos pela sociedade, por ausência de conhecimento legal, que juízes, desembargadores e ministros deixem de lado a Constituição Federal, os princípios que ela encerra e comecem a julgar de acordo com o que vier a cabeça, ou com o que chamamos “a moral e os bons costumes de cada um”, permitimos que o STJ discorde do STF, que leis sejam editadas em verdadeira desobediência ao texto Constitucional, que após uma decisão do STF o Congresso aprove uma lei contrária a decisão proferida e assim por diante.

Estabelecemos com isto, pois, a verdadeira insegurança jurídica, permitimos os julgamentos sobre dilemas e atendendo aos anseios midiáticos para promoção de popularidade entre juízes e promotores, deixamos de assegurar os princípios e preceitos constitucionais e retiramos de vocês, a cidadania que tanto se fala e brada aos quatro cantos do país. E que não esqueçamos aqui, que cada julgamento desses no STJ ou STF, assim como nas sessões do Congresso Nacional, demandam tempo e tempo, nesses ambientes, é muito caro a todos os contribuintes.

A solução a todos esses problemas indicados está na perspectiva de que, a cada leitura e busca de conhecimento que fazemos no campo jurídico nos aproxima de um grupo social cuja cultura jurídica obriga ao respeito dos direitos e garantias fundamentais, ao julgador que esteja comprometido com a Constituição Federal e aos dirigentes comprometidos com o bem estar e a dignidade da pessoa humana por consciência de que o desrespeito a essas condições fundamentais levarão a processos por responsabilidade, além de ceifar a carreira política daqueles inescrupulosos e corruptos.

Assim, a mensagem principal deste artigo é de que a RODA JÁ FOI INVENTADA (a cerca de 3.500 a 3.350 a.C.) e não precisamos perder tempo, dinheiro, sossego ou estabilidade jurídica e cidadã com aqueles que não nos representam e jamais deveriam ocupar cargos públicos com tamanha incidência sobre nossas vidas.

*Marcelo Bareato é advogado criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).