A legítima defesa no projeto Moro

*Alan Kardec Cabral Jr.

De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição…
O cano do fuzil
Refletiu o lado ruim do Brasil
Nos olhos de quem quer
E quem me viu, único civil
Rodeado de soldados
Como seu eu fosse o culpado
(…)
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse tribunal de rua! É!
Nesse tribunal! Nesse tribunal de rua!
(O Rappa).

O ministro Sérgio Moro apresentou Projeto de Lei “Anticrime” que em breve deverá ser pautado no Congresso Nacional. Entre outras propostas, pretende-se modificar o dispositivo do Código Penal que regula a legítima defesa (art. 25). Neste artigo, analisar-se-á, então, a proposta de alteração da clássica legítima defesa, contidas no item IV do projeto.

I – A PROPOSTA DE ALTERAÇÃO

Na apresentação do projeto, e também massivamente repetido nas entrevistas do ministro, deixa-se claro que há novos inimigos nacionais, quais sejam, os membros – ou supostos membros – de organizações criminosas. Estes são os indesejáveis da vez utilizados como pretexto para endurecer penas e propor mais leis penais.

Baseado nessa premissa, deseja-se alargar os atuais contornos da legítima defesa e, com isso, excluir a ilicitude na seguinte hipótese:

Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:

I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem.

Como destacado, insere-se o verbo prevenir – ou seja, permissão dada para o agente antecipar a algo que porventura acontecerá.

Seria a legítima defesa presumida.

Para o prof. Luís Greco, a modificação é supérflua e amadoristicamente redigida, pois: Toda legítima defesa serve para “prevenir”, no sentido de que a legítima defesa não é uma reação post facto. Ela só pode ocorrer em momento imediatamente anterior (agressão iminente) ou concomitante (agressão atual) à agressão, nunca depois; não existe legítima defesa punitiva. Nesse sentido, ela tem uma orientação preventiva, não repressiva .

Entretanto, essa alteração não fora inserida de modo despropositado, uma vez que se permite entender que o agente de segurança tem licença para matar, preventivamente, quem porte arma (qualquer calibre), em puro juízo de futurologia.

Não obstante, a alteração proposta fere o racional de normas nacionais e internacionais orientadas por premissas opostas: os agentes de segurança, que são treinados e capacitados no uso e manuseio de armas de fogo e em situações de confronto, se submetem a regras de legítima defesa mais restritiva – ou seja, por em tese serem mais preparados, os agentes devem usar arma de fogo somente diante de situação extrema, quando não haja outros meios suficientes para dominar e deter , sempre pautados pelo princípio da proporcionalidade.

O grande problema que se coloca nesse caso é entender a lógica punitiva de o Estado deixar à mão de seu braço armado a decisão de quem merece viver ou morrer, em uma “zona de absoluta indeterminação entre a anomia e o direito, em que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe”.

Em suma, com o projeto, sob pretenso ato de defesa, estar-se-á legitimando a pena de morte.

II – TRIBUNAL DE RUA

O que mais chama a atenção no projeto do Ministro da Justiça, além da flagrante inconstitucionalidade da proposta, é a total ausência de percepção à realidade.

Não sem razão, temos a polícia que mais mata e mais morre no mundo.

Para se ter uma ideia, em recente reportagem do dia 07.07.2018, o jornal O Popular trouxe dados alarmantes. Goiás registrou, nos primeiros 6 meses de 2018, 233 mortes durante ações policiais[1].

O número de pessoas mortas em confrontos com a polícia, em Goiás, no ano de 2017, foi de 270 mortes, quase o triplo de 2014, em que houve 96 mortes, e mais de cinco vezes que 2011, que registrou 52 mortes.

Para legitimar essas condutas, a justificativa mais comum é justamente de estar-se diante à legítima defesa, própria ou de outrem. Todavia, algumas questões nos confronto vêm chamando a atenção. Uma delas é o fato de ser praticamente nulo o índice de agentes públicos vitimados nas intervenções.

Não à toa, as polícias brasileiras são consideradas uma das mais violentas do mundo. Em dados gerais, entre 2009 e 2016, quase 22 mil pessoas foram mortas por algum agente dessas forças de segurança[2]. A polícia matou, em 2016, uma pessoa a cada 2 horas – totalizando 4.224 pessoas[3]. Por sua vez, em 2017, conforme vem tornando-se tradição, houve aumento de 20% desse número, o que perfaz 5.144 mortes[4]. As vítimas, sem qualquer surpresa, são as preferenciáveis da criminalização secundária: homens, jovens e negros.

Para se ter ideia da gravidade dessas ações, em pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, apontou-se a existência de crimes capitais contra crianças de 10 e 11 anos[5]. São crianças, segundo os policiais, insurgindo contra patrulha treinada e armada.

No contexto histórico, essas ações ganharam força na década de 60, pois foi o tempo que houve uma reconfiguração da moral. O que era visto como abjeto e cometido por pessoas desequilibradas passa a ser considerado instrumento de controle, um meio de se estabelecer a ordem. Naquela década, então, surgiu o Esquadrão da Morte (organização paramilitar), e a atividade ostensiva da ROTA (tropa especial do Comando Geral da Polícia Militar) foi intensificada[6]. Os homicidas, assim, passaram a ideia de que só matavam “quem merecia morrer”, por isso essa metodologia passou a ser disseminada como forma de proteção à sociedade, espalhando-se rapidamente.

Apesar dessa ações, toda conduta policial deve passar pelo escrutínio do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Ciente disso, a Anistia Internacional checou 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, e descobriu que, até abril de 2015, portanto mais de três anos depois, 183 investigações seguiam em aberto[7], embora existam estudos sobre o uso da força letal que concluíram, de forma unânime, que houve uso excessivo da força letal/execuções sumárias[8] nos casos analisados.

Nesses estudos, por meio das evidências médico-legais, conclui-se que 46% dos corpos tinham pelo menos quatro tiros; 61% dos corpos tinham recebido pelo menos um tiro na cabeça; 65% das vítimas apresentaram pelo menos um tiro nas costas; além de haver ainda casos de tiro à queima-roupa (de curto alcance), um sinal mais claro de execução.

Na justiça, de 301 processos penais encontrados, 295 foram arquivados. Em 6 casos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os policiais, que resultou, posteriormente, em absolvição, mesmo em casos com disparos à queima-roupa e histórias inconsistentes[9].

Poder-se-ia indagar, então, quais são os motivos da existência de tamanha dificuldade na solução/punição desses casos?

Ao abordar o tema, o desembargador Sérgio Verane, em Assassinatos em nome da lei, asseverou que:

O aparelho repressivo-penal e o aparelho ideológico-jurídico integram harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz. Se as tarefas não estivesses divididas e delimitadas pela atividade funcional, não se saberia qual é a fala de um e qual é a fala de outro – porque todos têm a mesma fala, contínua e permanente[10] (grifamos).

Afinal, a polícia mata, mas não mata sozinha.

Por tudo isso, a nossos ver, neste ponto, o Projeto não pode prosperar, pois ampliar a legítima defesa significa ver o agente isento de pena mesmo à falta dos requisitos objetivos. É, deveras, chancelar a agentes um poder à margem da lei. O anteprojeto, como visto nos dados acima, caminha na contramão de um problema nacional crônico – que demanda remédio, e não estímulo[11].

[1] Disponível em: https://www.opopular.com.br/editorias/cidades/goi%C3%A1s-registra-233-mortes-durante-a%C3%A7%C3%B5es-policiais-em-seis-meses-1.1568499.

[2] Editorial. IBCCRIM, Boletim n. ° 309. Agosto, 2018.

[3] Ibid.

[4] Anuário brasileiro da segurança pública. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_Anu%C3%A1rio.pdf

[5] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/21/raca-e-idade-determinam-uso-da-forca-letal-pelas-policias/

[6] Disponível em: http://www.usp.br/aun/antigo/exibir?id=7881&ed=1393&f=43

[7] Anistia Internacional. Você matou meu filho! homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, p.06

[8] CANO, Ignácio. Uso e Abuso das forças letais pelas polícias brasileiras. UNIFESP, 2017, p. 8.

[9] Ibid., pp. 13/14.

[10] VERANE, Sérgio Apud D`ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Revan, 2015, p. 21.

[11] Nota técnica do Instituto Carioca de Criminologia.

*Alan Kardec Cabral Jr. é especialista em Processo Penal, Direito Penal e Criminologia, advogado no escritório Rogério Leal Advogados.