Um novo olhar sobre o vínculo empregatício

Na coluna desta quarta-feira (29), a convidada é a colega Verissa Coelho Cabral Pieroni. Ela vai dar um olhar sobre o vínculo de empregatício, que tem mudado ao longo do tempo. A advogada é Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Compliance e Compliance Digital. É também consultora hurídica em Departamento Pessoal e Recursos Humanos. Controladora Jurídica.

Leia a íntegra do texto:

Verissa Coelho Cabral Pieroni

É certo afirmar que novas modalidades de labor surgem a cada dia, algumas recentemente reguladas pelo nosso ordenamento jurídico como o teletrabalho, o trabalho intermitente e temporário, por exemplo, todavia, todas essas modalidades são espécie do gênero relação de emprego que é caracterizada pela presença dos requisitos da subordinação, pessoalidade, onerosidade, habitualidade e pessoa física.

Nesse diapasão foi alterado também o art. 4º A da Lei 6.019/74, autorizando a contratação pelo tomador de serviços de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal (atividade-fim), à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.

A legislação também acrescentou o § 2º ao art. 4º A, determinando que não se configure vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.

Diante da inovação da ampliação da terceirização, fez surgir a figura do empregado  pessoa  jurídica  contrapondo-se  aos  requisitos  da  pessoalidade  e  pessoa física para fins de reconhecimento do vínculo empregatício.

Vale ressaltar que o empregado pessoa jurídica não existe no campo técnico, o que existe é uma empresa prestando serviços para outra e levando o contrato para a ótica do Direito Civil, mas na prática o que se tem visto é trabalhadores abrindo empresas individuais e celebrando contratos para exercer as mesmas atividades e sob o mesmo controle, semelhante ao dos empregados com vínculo.

Essas inovações e a dificuldade em reconhecer o vínculo empregatício com os cinco elementos já citados, nesses novos postos de trabalho, vem acrescentando à  doutrina dois novos elementos.

Carlos Henrique Bezerra Leite diz que esses novos elementos seriam acidentais  e não essenciais, mas podem ser grandes aliados do intérprete em algumas situações em que haja dificuldades em se tipificar a relação empregatícia.

Assim, um quinto elemento, de natureza subjetiva, seria a intencionalidade (também denominada de profissionalidade), porquanto, assevera José de Ribamar da Costa, inspirado em Cabanellas, para que exista um contrato de trabalho, é necessário que a pessoa tenha ânimo de prestar serviços sob a forma de empregado. É o elemento subjetivo do contrato. Em algumas hipóteses é preciso verificar se existe o animus contrahendi, isto é, a intenção de contratar[1].

O sexto elemento que vem sendo apontado seria o da ajenidad. Trata-se, segundo Luciano Viveiros:

De um conceito oriundo da doutrina estrangeira, assim preconizada pelo mestre Manuel Alonso Olea, jurista espanhol. A ajenidad seria oposta ao conceito de trabalho autônomo ou por conta própria. Refere-se à atribuição inicial e direta dos frutos do trabalho,   compreendendo-se   ―todo   resultado   do   trabalho   produtivo   do   homem, intelectual ou manual, valioso por si mesmo ou associado ao de outros, quer consista em um  bem,  quer  em  um  serviço‖.  A  ajenidad  pode  ser  entendida  como  ―a  utilidade patrimonial do trabalho‖. Explica Olea que se utiliza de um sentido jurídico estrito e bem perto da ‗alineação‘, com a distinção de que esta é pertinente a aquisições derivativas, enquanto aquela se refere a aquisições originárias, resultantes do trabalho para o alheio. O pensador e filósofo alemão Karl Marx, em seu livro ―O Capital‖, falava sobre a existência da ―mais-valia‖. Com ressalvas, a ideia e a interpretação do conceito prescrito naquela obra estariam bem próximas de um plus que, extraído do resultado da produção das empresas, se incorporaria ao patrimônio dos trabalhadores – por via indireta – num regime onde as empresas fossem todas públicas. Na verdade, aquelas vantagens próprias auferidas pelas empresas não serviriam apenas para atender aos seus próprios desembolsos como encargos sociais, tributos, despesas operacionais bem como o lucro, que não se reverteria a um só e único proprietário. Destinar-se-ia uma parcela aos próprios trabalhadores, indiretamente, na forma de educação, saúde, saneamento básico, habitação e demais atribuições sociais que arrefeceriam o patrimônio do povo. Com  base  na  ideia  da  ―mais-valia‖,  Olea  deve  ter  se  inspirado  para  encontrar  na ajenidad uma característica de vínculo de emprego. [2]

Em outras palavras, pode-se concluir que esse sexto elemento baseia-se na apuração da identificação de quem se beneficiou do trabalho do empregado.

É certo que o contrato de prestação de serviço autônomo está cada vez mais comum, pois atende a várias situações do mercado atual, podendo ser utilizado nos serviços de crowdsourcing, sob demanda ou o de prestação de serviços terceirizado, conforme citado acima, com a ampliação da terceirização.

Abrantes descreve o cenário atual como:

De crise do paradigma clássico do Direito do Trabalho‖. Há hodiernamente uma grande diversificação das espécies de contratos de trabalho, tendo surgido diversas modalidades dos mesmos até então inéditas, ou variações dos modelos já existentes, tudo para satisfazer as exigências de determinadas atividades econômicas, ensejando a redução de custos. Exemplifica o autor alguns desses novos contratos, como a termo, o de trabalho temporário, o a domicílio, o a tempo parcial, o ensejador da partilha do posto de trabalho, do emprego plural, do trabalho em grupo e o de teletrabalho[3].

Estamos diante do seguinte cenário, trabalhador com vínculo empregatício, amparado pelo Direito do Trabalho e todas as suas garantias x trabalhadores autônomos,  sem vínculo empregatício, amparados pelo Direito Civil e com suas garantias estritamente contratuais.

O cenário atual vem sendo questionado tanto no âmbito nacional, quanto internacionalmente, tendo a empresa Uber, por ser percursora e amplamente defensora dessa  nova  forma de  pensar o  valor  trabalho, emprestado o  nome  ao  fenômeno,  ao qual chamamos de “uberização”. 

Da leitura da obra de Márcio Toledo Gonçalves extraímos que:

A partir do início do século XXI presenciamos o surgimento de um fenômeno novo, a uberização que, muito embora ainda se encontre em nichos específicos do mercado, tem potencial de se generalizar para todos os setores da atividade econômica. A empresa Uber empresta seu nome ao fenômeno por se tratar do arquétipo desse atual modelo firmado na tentativa de autonomização dos contratos de trabalho e na utilização de inovações disruptivas nas formas de produção. O disruptivo é a criação destruidora na acepção cunhada pelo economista austríaco Joseph Schumpeter. As tecnologias com potencial disruptivo abrem um campo extraordinário de acumulação de capital ao provocarem o naufrágio dos concorrentes que, a partir do estabelecimento de um novo padrão tecnológico provocam a obsolescência dos demais concorrentes. Tais tecnologias estabelecem outra formulação para a extração de valor do trabalho. Avanço tecnológico e otimização do processo de extração de valor são, portanto, duas de suas características importantes, conquanto não únicas.[4]

A rápida evolução do mercado de trabalho e essas novas formas de prestar serviços, com maior liberdade e autonomia, vem alterando o valor trabalho e nesse ponto, paramos para fazer uma breve reflexão, o trabalho tem como um fim, o social? O  trabalho é um meio de realização pessoal? O trabalho é visto apenas como meio de geração de renda?

Haverá um equilíbrio entre a busca por maior liberdade e autonomia de negociação com as garantias de proteção ao emprego?

O autor James Magno de Araújo Farias em sua recente obra nos traz uma reflexão sobre o cenário atual, vejamos:

O mundo vive uma nova crise dos direitos sociais, em tempos de busca de sua maturidade, preservação e efetivação. A ascensão do neoliberalismo no final do século XX e a crise financeira no final da primeira década do século XXI levaram às mais variadas discussões: será que o empregado não poderia estar mais protegido contra as vicissitudes do mundo do trabalho? Não poderia haver mecanismos mais benéficos à proteção ao emprego, que permitissem ao trabalhador planejar gastos e investimentos a longo prazo, algo que ele não pode fazer em um mercado de mão de obra farta e caracterizado pela instabilidade no emprego? Não poderiam os encargos sociais ser mais racionalizados?[5]

A economia gig está apenas começando e a tendência é de crescimento,    perturbando estudiosos do Direito do Trabalho e trabalhadores.

O certo é que atualmente o número de empresas que adotam o regime de homeoffice para a integralidade de sua equipe tem crescido cada vez mais, a semana de  quatro dias úteis já é tendência em países como Islândia e percebe-se o anseio por uma maior liberdade de negociação entre empregados e empregadores.

Será que a geração Y que será introduzida no mercado nos próximos anos espera ser empregada em tempo integral, com empregos fixos, seguros e com jornada completa, trabalhando para apenas uma ou duas empresas ao longo de toda a carreira? Ou será que essa nova geração que já nasceu conectada ansiará por uma liberdade de contratação, negociando individualmente sua forma de atuação, local de prestação de serviços e demais outros aspectos que envolverão o trabalho?

[1] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pag.151

[2] VIVEIROS, Luciano. Direito do trabalho: conflitos, soluções e perspectivas. Rio de Janeiro: Trabalhistas, 1996, pag. 11.

[3] ABRANTES, José João. O direito laboral face aos novos modelos de prestação do trabalho. In: MOREIRA, António (coord.). IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Coimbra: Almedina, p. 84-86, 2002

[4] GONÇALVES, Márcio Toledo. Uberização: um estudo de caso — as tecnologias disruptivas como padrão de organização do trabalho no século XXI. Revista LTr, São Paulo, p. 72, mar. 2017.

[5] FARIAS, James Magno Araújo. Direito do trabalho: panorama no Brasil após a reforma trabalhista. São Paulo: LTr, 2018.