Empregados/celetistas em entidades estatais e concursos públicos

Frederico Meyer Cabral Machado vai escrever hoje sobre os empregados/celetistas em entidades estatais e concursos públicos. O convidado desta semana da coluna Rota Trabalhista é sócio do Núcleo de Direito Público no Escritório Lara Martins Advogados Associados.

Confira a íntegra do texto abaixo:

Frederico Meyer Cabral Machado[1]

Costumeiramente, ao ouvirmos falar em concurso público ou mesmo na expressão “servidor público”, imediatamente pensamos no servidor estatutário. Pensamos em carreiras típicas de Estado (como os servidores e membros do Judiciário e MP, por exemplo, ou os agentes, escrivães e delegados de polícia, dentre outros tantos) e nos aspectos mais desejados a elas atrelados: estabilidade, aposentadoria com remuneração igual (ou muito próxima) àquela percebida enquanto em plena atividade, dentre outras marcas desta espécie de vínculo.

Esquecemo-nos, então, de um rol de servidores não estatutários: os empregados públicos, os “celetistas” da Administração.

É bastante compreensível este lapso de memória, porquanto a Constituição da República erigiu, no art. 39, caput, o regime jurídico único[2] como um pilar do funcionalismo brasileiro. A ideia por trás da norma era extirpar a multiplicidade de vínculos e criar, como padrão, o vínculo efetivo, aquele tratado em estatuto funcional de cada ente da Federação (a União tem o seu estatuto, os estados-membros o têm, bem como os municípios).

Após uma breve aventura, de cerca de dez anos, em que o regime jurídico único deixou de subsistir por força da edição da Emenda Constitucional nº 19/1998[3], a situação voltou a ser como antes como efeito de decisão do STF publicada em 2008.

Isto não significa, todavia, o desaparecimento dos celetistas. As empresas públicas e sociedades de economia mista, pessoas jurídicas integrantes da Administração indireta, mas de personalidade de direito privado, fazem necessariamente concursos públicos para os postos a serem nelas ocupados. São chamados de empregados públicos os aprovados em tais certames, também denominados servidores públicos trabalhistas. Exercem funções públicas por força de um vínculo contratual, cuja norma de regência é a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Apesar de não haver mais, no ordenamento brasileiro[4], novos empregados na Administração direta (e nas autarquias e fundações públicas, que têm natureza de direito público e, portanto, se submetem ao regime jurídico único, o estatutário), as pessoas de direito privado integrantes da Administração indireta têm em seu quadro empregados públicos. Por esta razão é que a Petrobrás realiza frequentemente concursos, assim como os Correios e empresas de saneamento básico, fornecimento de energia elétrica, dentre outras atividades. Todas as estatais, em suma, sejam sociedades de economia mista (como o Banco do Brasil) sejam empresas públicas (como a Caixa Econômica Federal), têm de prover seus postos por meio do concurso público de provas e títulos.[5]

A exigência do concurso público para entidades privadas integrantes da Administração, inclusive que exercem atividades econômicas[6], tem as mesmas razões aplicáveis às entidades públicas e órgãos do Estado: busca-se conferir acessibilidade aos empregos públicos, de maneira isonômica, impessoal e moral. Afinal, a chance de lotearem empresas estatais com apaniguados dos políticos de ocasião não é das menores, se observarmos nossa tradição pouco republicana.

O concurso, nesse viés, tenta dirimir as nefastas influências políticas (que já existem em postos de livre escolha, não nos esqueçamos) que poderiam tornar as estatais verdadeiros cabides dos detentores do poder. O histórico recente do país é revelador de como conchavos espúrios podem atingir negativamente empresas sólidas: a Petrobrás é o melhor exemplo.

A seleção em si, desta forma, é idêntica àquela feita pela Administração direta: normalmente, contrata-se instituição de renome (que habitualmente realiza seleções) e publica-se edital com as “regras do jogo”. O sigilo e a impessoalidade devem imperar, garantindo a lisura do procedimento e a escolha dos candidatos efetivamente mais bem preparados. A transparência na condução do certame, a clareza nos editais e a vinculação tanto da entidade que realiza a competição quanto dos candidatos são idênticas ao que ocorre para a Administração direta. Nada diverge nestes aspectos citados.

Havia bastante discussão e controvérsia quanto ao juízo competente para julgar as demandas de candidatos a empregos públicos: se seria a Justiça do Trabalho ou a Justiça “Comum”. Felizmente, em março de 2020, o STF pacificou a matéria, consolidando tese no tema nº 922[7] de sua repercussão geral (RE paradigmático nº 960.429) e apontando esta última como a seara competente para análise das ações faladas.

Correta a decisão da Corte máxima do país: como ainda não existe efetivamente contrato de trabalho firmado, já que se discutem o próprio certame (e suas fases, regras e exames) e a aprovação/chamamento do candidato, não há discussão propriamente dita de caráter justrabalhista. Apenas após firmado o contrato é que o servidor, agora celetista de fato, travará quaisquer discussões com seu empregador na Justiça do Trabalho.

De modo geral, toda a lógica da construção jurisprudencial feita no país e capitaneada pelo STF com relação aos concursos públicos (normalmente os casos concretos julgados versam sobre cargos públicos efetivos) tem plena aplicação aos certames para os empregos públicos das entidades privadas da Administração. O direito subjetivo à convocação caso aprovado dentro do número de vagas, a escolha do momento desta convocação como prerrogativa estatal (e não do candidato), o não pagamento, em regra, de valores salariais antes da contratação determinada em decisão judicial, etc. Não havendo incompatibilidade decorrente da distinção marcante dos regimes, o entendimento das Cortes judiciais do país é o mesmo para as seleções para cargos efetivos ou empregos públicos. E, claro, isto é ótimo, porque representa segurança jurídica para todos os envolvidos na relação: Administração e candidatos.

Enfim, ainda que enormes e diversas as diferenças entre os regimes estatutário e trabalhista (CLT), do ponto de vista da seleção pública dos melhores candidatos possíveis, não há tantas divergências assim. O arcabouço constitucional é, basicamente, o mesmo, como se vê com clareza nos incisos do artigo 37 da Constituição da República.

Obviamente, as notáveis distinções se tornam evidentes após o ingresso no serviço público. O artigo 41, após a EC 19/98, passou a assegurar apenas aos detentores de cargo efetivo a estabilidade[8] tão própria do funcionalismo brasileiro. O servidor trabalhista, neste sentido, que não goza das regras anteriores a 1998 (ano da reforma administrativa promovida pela Emenda nº 19), não possui estabilidade e pode ser desligado pelo empregador.

Atualmente, o TST entende poder ser imotivada a demissão do empregado público[9]; a exceção está no caso dos Correios, em que o STF julgou[10] ser necessária a motivação para a dispensa do servidor. Entendeu-se, e isto restou exposto nos embargos de declaração julgados depois, que os Correios prestam “serviço público em regime de exclusividade, que desfruta de imunidade tributária recíproca e paga suas dívidas mediante precatório”, o que traria a necessidade de motivação.

Infelizmente, ainda hoje a questão não está pacificada; o STF definirá a solução acerca da necessidade ou não de motivação quando da dispensa do celetista não estável (após EC 19/98). Em que pese o TST ter consolidado seu entendimento há mais de uma década, como acima esposado, foi reconhecida a repercussão geral[11] no RE nº 688267, ainda pendente de julgamento de mérito.

A decisão da Corte Constitucional porá fim à celeuma e a uma avalanche de demandas judiciais ajuizadas por empregados públicos demitidos que se sentiram injustiçados pela conduta do empregador.

[1]   Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-graduado em Direito Público. Procurador do Estado de Goiás. Sócio advogado do núcleo de Direito Público em Lara Martins Advogados Associados.

[2]     Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.

[3]    A norma acima transcrita passou a ser: “Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.”

Entretanto, em razão de vícios formais, o STF suspendeu, a partir da decisão (ex nunc) proferida na ADI 2135 – MC, a eficácia da norma trazida na emenda de 1998. A decisão é de agosto de 2007 (data do julgamento; publicação em março de 2008).

[4]  Ao menos até a aprovação da próxima reforma administrativa, que deve trazer substanciais modificações nas espécies de vínculos firmados com o Estado. Trata-se da PEC nº 32/2020, em trâmite na Câmara dos Deputados e ainda em fase inicial, atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC).

[5]  Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(…)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

[6]   Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

  • 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(…)

II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(…)

  • 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

[7]  “Compete à Justiça Comum processar e julgar controvérsias relacionadas à fase pré-contratual de seleção e de admissão de pessoal e eventual nulidade do certame em face da Administração Pública, direta e indireta, nas hipóteses em que adotado o regime celetista de contratação de pessoas, salvo quando a sentença de mérito tiver sido proferida antes de 6 de junho de 2018, situação em que, até o trânsito em julgado e a sua execução, a competência continuará a ser da Justiça do Trabalho.”

[8]   Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

[9]   247. SERVIDOR PÚBLICO. CELETISTA CONCURSADO. DESPEDIDA IMOTIVADA. EMPRESA PÚBLICA OU SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE (alterada – Res. nº 143/2007) – DJ 13.11.2007

I – A despedida de empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, mesmo admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade;

II – A validade do ato de despedida do empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais.

[10] Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Demissão imotivada de seus empregados. Impossibilidade. Necessidade de motivação da dispensa. (…) Os empregados públicos não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo aqueles admitidos em período anterior ao advento da EC 19/1998. (…) Em atenção, no entanto, aos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa. A motivação do ato de dispensa, assim, visa a resguardar o empregado de uma possível quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. Recurso extraordinário parcialmente provido para afastar a aplicação, ao caso, do art. 41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação para legitimar a rescisão unilateral do contrato de trabalho.

[RE 589.998, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 20-3-2013, P, DJE de 12-9-2013, Tema 131.]

Vide RE 589.998 ED, rel. min. Roberto Barroso, j. 10-10-2018, P, DJE de 5-12-2018, Tema 131

[11]   Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. DISPENSA DE SEUS EMPREGADOS ADMITIDOS APÓS APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DO ATO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Revela especial relevância, na forma do art. 102, § 3º, da Constituição, a questão acerca da necessidade de motivação para a dispensa de empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista admitidos por meio de concurso público. 2. Repercussão geral da matéria reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC.