O fim da Lava Jato não enterrou o lavajatismo

Mesmo depois de implodida após a exposição dos vícios e abusos que lhe renderam repercussão nacional, a Operação Lava Jato, que funcionou como um laboratório de práticas a serviço da mentalidade inquisitória, continua a produzir reflexos no sistema de justiça criminal brasileiro.

Exemplo desses reflexos pode ser percebido nos autos da Correição Parcial n. 5521462.67 do TJGO, por meio da qual o representante do MPGO se insurgiu contra decisão proferida pelo Juízo da 7ª Vara Criminal da Comarca de Goiânia que “indeferiu pedido para a leitura de denúncia à testemunha em audiência de instrução e julgamento, que não se recordava dos fatos”. Na ocasião, o Membro do MP, ao sustentar suas razões à reforma, referiu que “o garantismo penal apegou-se a fórmulas absurdas, a questiúnculas que não interferem na busca da verdade (mas que são elevadas a potência por aqueles que acreditam que a defesa pode tudo), ou mais, interferem porque impedem que a verdade possa ser perseguida” [1].

A irresignação ministerial foi acolhida pelo TJGO, mas por outros argumentos, conforme se verifica da ementa do julgado, aqui transcrita: “O indeferimento do pedido ministerial de leitura da denúncia antes da oitiva da testemunha configura cerceamento à acusação e, consequentemente, flagrante prejuízo na busca da verdade real, devendo, pois, ser ouvida novamente a testemunha, notadamente porque tal procedimento não é apto a induzir as respostas e não gera nulidade da sentença (Precedentes do STJ).

Coincidência ou não, o discurso do Membro do MPGO, contrário à Teoria do Garantismo Penal [2] ou àquilo que entendeu sobre o estudo de Ferrajoli, indica que o espectro da lava jato foi interiorizado pelos rincões do país, assumindo a forma do que se pode chamar de “doutrina lavajatista” ou, simplemente, de lavajatismo. Explico.

Enquanto perdurou, além do apoio que obteve de parte da grande mídia, de setores ligados à indústria e ao comércio e de partidos políticos, a operação lava jato também contou com apoio intelectual, se é que assim o podemos chamar. Reunidos em torno da ideia de emprestar legitimidade “científica” à operação, Membros do Ministério Público Federal, do Poder Judiciário e representantes da Academia formularam aquilo que ficou conhecido como “garantismo penal integral” [3], ou o suporte teórico da malfadada operação.

Apresentado por seus entusiastas como a peça que faltava na teoria do garantismo penal, a proposta de Douglas Fischer e de sua turma descarrilou da “grande tradição do pensamento iluminista e liberal que no campo do direito penal vai de Beccaria a Francesco Carrara” [4] na medida em que desconsiderou os imperativos de limitação do direito penal e de proteção do mais débil – em face do poderoso Estado – que dela decorrem.

Na prática, ao confrontarem o princípio da mínima intervenção à ideia de vedação da proteção deficiente – a bens jurídicos, desconsiderando totalmente especificidades dos direitos humanos como inerência, indivisibilidade, interdependência e unidade [5], concluíram que a intervenção do Estado à esfera individual estaria autorizada sempre que o respeito às garantias do infrator representasse óbice à apuração de delitos.

No que alude aos crimes contra a ordem econômica, tônica da operação lava jato, os teóricos lavajatistas foram ainda mais longe. Segundo eles, se a materialização dos direitos humanos dependente de correspondência orçamentária, cabendo ao Estado efetivá-la, a ideia de realização dos direitos humanos não é possível no contexto de um Estado com os cofres dilapidados. Logo, a proteção à dignidade econômica autorizaria o afastamento de parte dos direitos individuais e garantias de pessoas investigadas por promover a dilapidação dos cofres públicos, justamente, para que a promoção dos direitos humanos em favor do conjunto da população seja reestabelecida.

Foi assim que a operação lava jato, escorada em arremedo teórico de cariz utilitarista, sagrou-se por sua prodigalidade em antecipar as barreiras de punição e mitigar os direitos e garantias individuais das pessoas que investigava, afinal, o combate aos saqueadores dos cofres públicos justificava as ações empreendidas pela força tarefa e seus consorciados, desde sempre denunciadas pela Advocacia Criminal em razão dos flagrantes excessos e abusos.

Tornando à Correição Parcial, embora os conceitos de “cerceamento à acusação”, “prejuízo em processo penal” e “busca da verdade real” sugiram maior digressão, o que faremos em outros edições da Coluna Defesa Criminal, não cabendo, nesse momento, dissertar-se sobre o acerto ou o desacerto do Acordão, fato é que o episódio apontado desvela uma realidade que merece a atenção da comunidade jurídica comprometida com o estado democrático de direito e com a limitação do poder punitivo estatal: o fim da lava jato não enterrou o lavajatismo.

[1] Ver Correição Parcial n. 5521462.67, TJGO. 

[2] Sobre o tema ler FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, 2014, Editora RT. 

[3] FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina do TRF4, 2009. 

[4] Prefácio de Norberto Bobbio no livro Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, 2014, Editora RT, p. 11.   

[5] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos, 7. Ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2020. 

Giro pelos Tribunais 

Tema Repetitivo n. 1.084 – STJ: Submetida ao STJ questão relacionada ao reconhecimento da retroatividade das alterações promovidas pela Lei n. 13.964/2019 nos lapsos para progressão de regime, previstos na Lei de Execução Penal, dada a decorrente necessidade de avaliação da hediondez do delito, bem como da ocorrência ou não do resultado morte e a primariedade, a reincidência genérica ou, ainda, a reincidência específica do apenado, o Superior Tribunal de Justiça firmou a seguinte tese: É reconhecida a retroatividade do patamar estabelecido no art. 112, V, da Lei n. 13.964/2019, àqueles apenados que, embora tenham cometido crime hediondo ou equiparado sem resultado morte, não sejam reincidentes em delito de natureza semelhante. A questão ainda será enfrentada pelo STF da pendência de julgamento do RE n. 1345734, admitido em razão da suposta existência de matéria constitucional e de repercussão geral. 

Efemérides da Justiça Criminal 

Submetida ao Órgão Colegiado do Conselho Penitenciário do Estado de Goiás a criação do Prêmio de Direitos Humanos e Boas Práticas na Execução Penal, a proposta homenageia o saudoso Advogado Criminalista, Presidente da OAB/GO e reconhecido jurista que atuou em defesa dos direitos humanos, da justiça e da democracia, Dr. Wanderley de Medeiros.