Controle de convencionalidade e jurisdição penal

A atuação dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em face do Estado Brasileiro [1] tem revelado o potencial virtuoso do bloco de convencionalidade no controle do poder punitivo estatal, propósito que norteia o exercício da Defesa Criminal e que deve ser inerente à atividade de todos os atores do sistema de justiça criminal, seja do Ministério Público como fiscal da lei, seja da Magistratura, a quem incumbe, em caráter de definitividade, dizer o direito.

Entretanto, no Brasil, o controle de convencionalidade – isto é, a compatibilização das normas internas com a Convenção Americana de Direitos Humanos – ainda não é difundido, e, quando invocado, sua aplicação tem sido afastada a pretexto da chamada teoria da margem nacional de apreciação. Em síntese, referida teoria sugere que a submissão da jurisdição nacional à Convenção Americana – e ao bloco de convencionalidade que esta encerra – atentaria contra a soberania nacional, da qual a jurisdição é decorrência, impondo-se a responsabilidade primária de proteção aos direitos pertencentes ao Estado. Sem razão, como será demonstrado.

Sobre o controle de convencionalidade, não é demais recordar que o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1998, para todos os casos relacionados à aplicação ou interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos [2] . No que alude ao Brasil, essa competência foi reafirmada no julgamento do caso “Gomes Lund e outros vs. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), ocorrido em 24/11/2020, ocasião em que a Corte, ao enfrentar exceção preliminar de incompetência oposta pelo Estado brasileiro, declarou-se competente para apurar fatos ocorridos após esse reconhecimento (1998). Como obrigação convencional, o país assumiu o compromisso de compatibilizar as normas internas à Convenção, a fim de que eventuais assimetrias fossem eliminadas ou superadas de seu ordenamento jurídico.

Para além da obrigação assumida pelo país, consistente na compatibilização das normas internas à Convenção, o dever de realizar o controle de convencionalidade é obrigação que também decorre da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na medida em que, em diálogo com a Corte Europeia de Direitos Humanos, entende “necessário que a lei interna, o procedimento aplicável e os princípios gerais expressos ou tácitos correspondentes sejam, em si mesmos, compatíveis com a convenção [3]”.

A competência contenciosa da Corte IDH em nada é conflitante com a competência do STF. Como visto, enquanto compete ao órgão internacional o controle de convencionalidade das normas dos Estados-membros em face da Convenção Americana, ao Supremo compete o controle das normas infraconstitucionais em face da Constituição Federal. Essa compreensão decorre da chamada teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos [4], que “assegura aos direitos humanos no Brasil uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade internacional. Qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil”.

Mas a obrigação assumida pelo Brasil também é materializada através do chamado controle difuso de convencionalidade, que, de acordo com o que dimana da Convenção e o que sugere a Corte, deve ser exercitado pelo Poder Judiciário dos Estados-partes, a quem incumbe a obrigação imediata de compatibilização das normas internas e procedimentos com aquelas que decorrem dos instrumentos internacionais de direitos humanos de que o Estado é parte.

Sobre a realização do controle difuso de convencionalidade, deve ser preliminar, direto e mecânico: o juiz nacional, como longa manus do Estado, tem o dever de compatibilizar a normativa doméstica com os ditames dos tratados de direitos humanos ratificados e em vigor no Estado, devendo, para tanto, proceder ex officio (para além de quando há iniciativa da parte) [5].

Portanto, a atuação do Poder Judiciário no exercício da compatibilidade vertical material (normas internas relativamente aos comandos dos tratados de direitos humanos em vigor) é sempre direta, para além de não requerer pedido do interessado e, tampouco, autorização constitucional ou legislativa para tanto, por decorrer da jurisprudência vinculante da Corte Interamericana.

Também deverá o magistrado controlar a convencionalidade de forma preliminar, é dizer, antes da análise do mérito do pleito principal. Depois de realizado ex officio e preliminarmente, só assim poderá o juiz passar ao exame do mérito do pedido principal e proferir decisão. O exercício do controle de convencionalidade, porém, há de ser mecânico, ou seja, efetivado pelo simples cotejo, pela simplória sobreposição de uma norma (internacional) à outra (interna). Ainda, sempre que da compatibilização resultar conflito aparente de normas deverá prevalecer a norma que mais beneficie a pessoa humana [6].

E a teoria da margem de apreciação nacional? Deve ser afastada na medida em que a adesão do estado brasileiro à Convenção representa o principal traço da exteriorização de sua atuação soberana, do que deve decorrer a sujeição das normas internas ao bloco de convencionalidade e, especialmente, a vinculação do Poder Judiciário à tarefa de exercer o controle de convencionalidade, de ofício ou por provocação das partes.

Esse potencial virtuoso que decorre do bloco de convencionalidade, para além de ampliar as possibilidades de atuação da Defesa Criminal – e do Ministério Público forjado democrático – parece indicar o futuro da jurisdição penal, lugar em que, não nos enganemos, também será marcado pela eterna vigilância e controle do poder.

[1] OEA. Corte IDH, Caso Gomes Lund x Brasil, entre outros. 

[2] OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 62.1: Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 

[3] OEA. Corte IDH, Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez vs. Equador, sentença de 21/11/2007. 

[4] CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos, Curso de 2019, p. 418. 

[5] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis, 2018, p. 36. 

[6] STF, HC 90.450, Ministro Celso de Mello, Dje 05/02/2009.

Giro pelos Tribunais

HC 710687 – STJ: Em decisão liminar proferida no HC 710687 (DJe 13/12/2021), o Ministro do STJ OLINDO MENEZES (Desembargador Convocado do TRF1), afirmou inexistir, no sistema jurídico pátrio, em matéria de processo penal, o chamado poder geral de cautela dos Juízes. Para o Ministro, “os postulados constitucionais da tipicidade e da legalidade estrita vedam a adoção, em desfavor do investigado, do acusado ou do réu, de provimentos cautelares inominados ou atípicos”.

Efemérides da Justiça Criminal

Em janeiro de 2011, o magistrado José Paganucci Júnior, da Primeira Câmara Criminal, tomou posse como desembargador do TJGO, ocupando a vaga do então desembargador Benedito do Prado, que se aposentou voluntariamente. Antes de exercer a magistratura, José Paganucci Jr. advogou no município de Quirinópolis e região entre 1977 e 1983. Foi juiz titular das comarcas de Cachoeira Alta, Niquelândia e Itumbiara, onde trabalhou desde 1989. Como juiz substituto atuou em Paranaiguara, São Simão, Caçu, Quirinópolis, Bom Jesus, Goiatuba, Panamá e Buriti Alegre. Foi empossadodesembargador em 31/01/2011, tendo sido escolhido pela Corte Especial do Tribunal por critério de antiguidade.