Os presos e as mortes por coronavírus

*Odilon de Oliveira

O ano de 2021 começou com 7.716.405 infectados pela COVID 19, ou, 3,67% dos 210 milhões de brasileiros. No sistema prisional, a realidade é bem pior: o índice de contaminação chega ao dobro.

Alcança 7,11% ou 54 mil dos 759 mil presos. O Brasil, com 60% dos presos dos 11 países da América do Sul, tem a 3ª maior população carcerária mundial e experimenta uma defasagem de 40% no número de vagas. Dos presos, um terço é de presos provisórios, sem condenação.

É simplesmente horrorizante e até inacreditável a afirmação de um julgador no sentido de que os estabelecimentos penais se encontram capacitados para atendimento médico-hospitalar adequado e que, no ambiente prisional, o risco de contágio é bem menor. São decisões judiciais de cunho populista, bem distantes do compromisso esperado pela estratégia internacional de prevenção e combate ao coronavírus.

A Organização das Nações Unidas (ONU) elege o ambiente prisional como alvo importante de medidas destinadas a interromper a proliferação dessa pandemia. As populações carcerárias vivem aglomeradas em espaços reduzidos, sendo praticamente impossível manter o distanciamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Como, então, sustentar a afirmação de que os estabelecimentos prisionais são os melhores lugares para manter distanciamento e possuem adequada estrutura médico hospitalar?

Repita-se que o contágio chega a 7,11% nas prisões e a 3,67% na população em geral.

Bem antes da COVID (agosto de 2015), o próprio Supremo Tribunal Federal já havia reconhecido, no sistema prisional, também pela superlotação, a existência persistente de situação degradante (ADPF 347-MC/DF). O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na senda das recomendações sanitárias internacionais, logo no comecinho da pandemia, editou a Recomendação n. 62, de 17/03/2020, depois prorrogada pelas Recomendações 68/20 e 78/20. O Congresso Nacional, prontamente, editou várias normas, inclusive emenda constitucional. O Executivo também.

Nesse contexto, os tribunais superiores passaram a flexibilizar a interpretação das normas processuais penais relativas a prisões, considerando a alta relevância da participação do Poder Judiciário na luta das nações contra o avanço da pandemia. Citam-se, dentre outras, três decisões, todas no rumo da proteção da saúde e da vida das pessoas privadas de sua liberdade e também das que com elas se relacionam funcionalmente. Não se pode negar que, também diretamente, a sociedade em geral é beneficiária dessa postura.

Em 14/10/2020, por unanimidade, a Terceira Seção (composta por 10 ministros) do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Habeas Corpus n. 568.693-ES, ordenando a imediata soltura, em todo o território nacional, de todos os presos, de grupo de risco ou não, cuja soltura dependesse apenas do pagamento de fiança. Muitas vezes, o juiz arbitra e o preso não tem dinheiro para pagar. O STJ, além da estratégia internacional de enfrentamento da questão, considerou também o “grande impacto financeiro que a pandemia já tem gerado no cenário econômico brasileiro, aumentando a taxa de desemprego e diminuindo ou, até mesmo, extirpando a renda do cidadão brasileiro, …” O beneficiário, como se percebe, não é o preso, individualmente, mas o povo em geral.

Acentuando que “o Judiciário não pode se portar como um Poder alheio aos anseios da sociedade, …”, o Superior Tribunal de Justiça ordenou: “oficiem-se os Presidentes dos Tribunais de todos os estados da Federação e os Presidentes de todos os Tribunais Regionais Federais para imediato cumprimento”.

Ordem clara, objetiva, devendo os juízes, federais e estaduais, de qualquer parte do Brasil, providenciar seu cumprimento, de ofício, independentemente de requerimento da defesa, sob pena de responsabilidade penal por abuso de autoridade (Lei 13.869/19) e desobediência a ordem legal (Código Penal), civil e disciplinar.

Apesar da clareza da ordem do STJ, há casos em que a determinação não foi cumprida. Em Mato Grosso do Sul, C.R. de M., preso em flagrante em 02/12/20, por porte ilegal de 18 munições, teve, em audiência de custódia, arbitrada fiança de R$ 10 mil. Sem condições financeiras, não conseguiu pagar. Contaminado, foi internado em um hospital público da Capital, mas veio a falecer em 23/12/20, de Covid19.

Este é um caso típico gerador do dever de indenizar a família, pelo Estado, por danos materiais e morais. A responsabilidade civil, aqui, é objetiva, indiscutível.

Em 17/12/20, citando a impossibilidade de julgamento colegiado do mérito em 2020, por conta do recesso forense, o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar em que considera os riscos de contágio “perigo de lesão irreparável ou de difícil reparação a direitos fundamentais das pessoas levadas ao cárcere…” (Habeas Corpus 188.820). A liminar beneficia presos integrantes de grupos de risco, salvo em caso de situações “excepcionalíssimas” justificadoras de prisão. De ofício, o juiz é obrigado a proceder imediata reavaliação de cada caso, adequando-o à liminar do STF.

Em 21 de dezembro de 2020, já no recesso forense, o Ministro Gilmar Mendes, também do STF, concedeu liminar no Habeas Corpus 195.872-MG beneficiando preso portador de hipertensão arterial sistêmica.

É assustadora a realidade das prisões brasileiras, porém não maior do que parece ser o desconhecimento de muitos que têm o dever funcional de enxergar isso.

*Odilon de Oliveira é juiz federal aposentado, integra o escritório Adriano Magno e Odilon de Oliveira & Advogados Associados.