O que está em jogo é o estado de direito

*Marcelo Bareato

Poucas pessoas buscam na história os antecedentes das agruras que evidenciam, em determinados momentos, a crise que se avoluma no cenário pátrio.

Na verdade, tudo depende de como queremos que o país seja visto ou reconhecido no futuro. A memória curta só interessa aos oportunistas e manipuladores, mas as consequências são sempre devastadoras e marcam as gerações, provocando reflexos em toda organização estrutural.

Não é por menos que abrimos nossas redes sociais e encontramos notícias como: “Exigência de cor da pele para emprego é racismo e deve levar à prisão, diz PGR” – notícia veiculada na página direitonews (23 de novembro de 2021), ou “Lei Mariana Ferrer é sancionada e proíbe humilhação em audiências” – notícia veiculada na página naçãojurídica (23 de novembro de 2021).

Mas o que tem de errado na ideia que se apresenta? Ao leitor mais despreparado para o trato político e jurídico, o que estamos lendo é o estado trabalhando, finalmente, em prol da população. Para o leitor mais atento, é a “reinvenção da roda”, ou seja, estão tentando passar como fato novo o que já existe desde a criação do Estado de Direito.

Nesse diapasão e de acordo com a Enciclopédia Jurídica da PUCSP: “A ideia de Estado de Direito, que tem origem na Idade Média, como forma de contenção do poder absoluto, ressurgiu nas últimas décadas como um ideal extremamente poderoso para todos aqueles que lutam contra o autoritarismo e o totalitarismo, transformando-se num dos principais pilares do regime democrático”.

Por sua vez, o site significados.com.br nos mostra que: “O conceito de Estado de Direito é relacionado ao poder do Estado. É quando esse poder, em relação às decisões que podem ser tomadas pelos governantes, é limitado pelo conjunto das leis, pelo direito. No Estado de Direito uma decisão não pode ser contrária à legislação, ou seja, a lei não pode ser violada”.

Dito isso, como o Procurador Geral da República indicou em sua fala, não é necessário que o Congresso Nacional crie uma nova lei que estabeleça pena de reclusão para quem cometer o crime de racismo, ao incluir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia no recrutamento para vagas de emprego, cujas atividades não justifiquem essas exigências, vez que já temos tais dispositivos no artigo 140, § 3.º do Código Penal, ao prever a figura da injúria racial: Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro: Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

E nos socorre, no mesmo sentido, quanto ao crime de racismo, previsto na Lei n.º 7.716 de 5 de janeiro de 1989, no artigo 20: Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Ora meu Caro Leitor! Se assim está posto, qual a necessidade de uma nova lei para dizer o que já está dito?

O mesmo se diga no que tange ao caso Mariana Ferrer, uma das piores façanhas do judiciário, perpetrado em terras Catarinenses, desde o ano de 2018 onde, para além de se discutir a culpa de um empresário na autoria de um estupro, com argumentos que, de per si, levavam a condenação em qualquer outro caso semelhante em todo contexto nacional, Mariana foi achincalhada em audiência, pelo advogado de defesa, com a conivência direta do juiz e promotor do caso.

De lá para cá, reconhecido o absurdo do tratamento dispensado à vítima, o episódio passou pelo STF, CNJ e pela opinião de vários juristas, os quais reconheceram, sem prejuízo do exame de mérito sobre o estupro, que o tratamento dispensado a garota era vergonhoso para as três instituições: Judiciário, Ministério Público e a OAB.

O que mais impressiona é que, cientes do absurdo que envolveu a tal audiência, nada foi feito, embora haja previsão de falta ética para o agir do advogado do caso no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, no comportamento dispensado pelo Magistrado na Lei Orgânica da Magistratura, do desatino do Ministério Público, também na Lei Orgânica do Ministério Público, além da previsão expressa do Código Penal, artigo 344, ao descrever a coação no curso do processo, e Código de Processo Penal que, no seu artigo 400, prevê como deverá ser o tratamento da partes durante a audiência de instrução e julgamento, notadamente no § 1.º, cujo teor é: “as provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias”.

É importante que percebamos o quão desnecessária era a promulgação da novíssima Lei “Mariana Ferrer”, Lei n.º 14.245/2021, a qual mais não faz do que permitir que aqueles que erraram não sejam punidos por pura inobservância legal ou, no caso anterior, que façamos de conta que ainda não há punição para casos de injuria racial ou racismo e esperemos a criação de uma nova lei para dizer mais do mesmo.

Esses não são fatos isolados ou exclusivamente brasileiros, mas abalam mundialmente países e estruturas governamentais e jurídicas como foi, por exemplo, o CASO DREHER, ocorrido na Alemanha do pós-guerra, quando numa perspectiva de proteção a todos os “criminosos” do holocausto, o judiciário se organizou para evitar a punição dos envolvidos, alçando promotores e juízes ao tribunal alemão e criando leis que blindavam os criminosos e tornavam a prescrição dos crimes de guerra em algo muito próximo, beneficiando criminosos alemães no mundo inteiro.

Destarte, é de suma importância que façamos um exercício de introspecção para avaliarmos se, realmente, queremos aceitar que os governantes tomem decisões ao seu bel prazer, ao alvedrio da lei, cada vez mais instaurando o autoritarismo e o totalitarismo em nosso sistema jurídico ou se validaremos o Estado de Direito obrigando aos que detém o poder e ao judiciário o respeito incondicional a lei, punindo toda e qualquer manifestação que lhe seja contrária, mostrando a população que temos poderes sérios e comprometidos com o Estado Democrático de Direito, sob pena do descontrole e total insegurança jurídica, lembrando, finalmente, que a cada escolha e passo dado O QUE ESTÁ EM JOGO É O ESTADO DE DIREITO!

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, advogado criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, conselheiro nacional da Abracrim, presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).