O papel dos cartórios nas uniões poliafetivas

João Ricardo S. Junqueira

Em 2016, um caso chamou a atenção da mídia e da sociedade. Leandro Jonattan da Silva Sampaio, um funcionário público de 33 anos se uniu através de escritura pública a Thais Souza de Oliveira e a Yasmin Nepomuceno da Cruz.

Na época, o caso gerou muita polêmica por se tratar da primeira união estável poliafetiva entre um homem e duas mulheres no estado do Rio de Janeiro. A escritura foi lavrada pela tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, no 15º Ofício de Notas, na Barra da Tijuca.

Juridicamente o que chama a atenção é a questão levantada pela Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CGJ/RJ) argumentando que a escritura pública não gera direitos, tendo em vista que a união poliafetiva não é respaldada no ordenamento jurídico, diferenciando-se, portanto, do registro civil do casamento e da escritura de união estável.

É preciso analisar essa questão à luz da constitucionalização do Direito Civil, onde o princípio da afetividade, apesar de não consagrado expressamente na Constituição Federal, determina que em todas as relações familiares, sejam elas em que formato forem, deverá haver a affectio. Esse sentimento de afeição deverá sobrepujar outros elementos, sejam eles materiais, biológicos ou jurídicos.

Observamos que não há exigência legal de escritura pública para configuração da união estável, e sim pré-requisitos definidos por lei, quais sejam, a convivência contínua e duradoura perante a sociedade, com o objetivo estabelecido de constituir família. Ou seja, é dar publicidade à sociedade da intenção de constituir família com pessoa com a qual tenha afeição.

Então qual seria a razão de declaração das uniões estáveis, inclusive das poliafetivas? Ao se registrar um documento no Cartório, damos publicidade ao ato celebrado, inclusive contra terceiros. Como vimos, a publicidade da convivência contínua e duradoura é uma das exigências da união estável. Além disso, através da escritura pública, os companheiros podem documentar o tempo de vigência da união e os efeitos patrimoniais oriundos dessa relação. Devemos lembrar que no Brasil, o regime previsto legalmente para a união estável é o da comunhão parcial de bens, e para que outro regime seja adotado é necessário a declaração das partes por escrito (no caso, a escritura).

Apesar da inexistência de exigência legal para elaboração de uma escritura pública de união estável, também não há justifica legal para que o notário deixe de reduzir a termo a vontade de três ou mais pessoas que queiram viver uma vida em comum. E vale salientar que não estamos discutindo aqui os aspectos morais dessa relação, e sim os princípios constitucionais que resguardam o pluralismo das entidades familiares, sobretudo o princípio da dignidade humana.

Embora a Constituição Federal de 1988 reconheça somente os institutos do casamento, da união estável entre pessoas de sexos diferentes e a família monoparental (formada por um dos genitores e seus filhos), a doutrina e os tribunais superiores (STF e STJ) entendem que essa enumeração é enunciativa e não taxativa.

O Direito de Família se transmuta a partir da própria evolução da sociedade, desde os tempos em que só o casamento era considerado uma entidade familiar. Com o passar do tempo, vimos o reconhecimento do concubinato na década de 60 e das relações homoafetivas no início do século XXI, e agora das relações poliafetivas.

Fica claro, portanto, que o Direito e os seus operadores devem evoluir na velocidade das mudanças sociais, buscando soluções mais eficazes e justas às novas demandas que surgem diariamente. Não é uma missão fácil, tendo em vista que não se muda uma lei do dia para a noite, e já os conceitos sociais mudam na velocidade de uma sociedade conectada em rede.

Talvez, então, seja a hora de olharmos como as leis são elaboradas, de forma a buscar uma flexibilização das normas, sem que as mesmas percam a sua eficácia e eticidade, mas de forma que a norma tenha uma completude maior, ou seja, que caiba ao Juiz o livre julgamento de todas as controvérsias que se apresentem ao seu exame.

Será preciso aguardar as futuras decisões judiciais para saber se realmente estamos no caminho certo ou se serão necessárias mudanças conceituais para que os direitos de todos sejam preservados.
Por fim, mesmo com todo o pluralismo das entidades familiares que encontramos atualmente, é preciso deixar bem claro a estrita observância ao princípio da não-equiparação entre o casamento e o companheirismo, pois, apesar de muitos autores considerarem a equiparação entre os dois institutos, fato é que são diferentes, e que embora possam se equiparar em alguns aspectos, não se confundem.

*João Ricardo S. Junqueira, é advogado especialista em Direito Empresarial, Pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil e Membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO.