O cancelamento de contratos durante a pandemia

*Camilla Metzker

As consequências da ação da Covid-19 na sociedade vão muito além do que vemos no noticiário cotidiano. Essa crise sem precedentes no campo da saúde também trouxe à tona diversas discussões sobre o impacto econômico para uma boa parte das relações civis, comerciais e de consumo, como por exemplo o rompimento ou reformulação de contratos, sejam eles de qualquer natureza. Este ponto leva à seguinte indagação: que impactos esse evento de força maior tem causado sobre contratos pré-estabelecidos?

A discussão começa com a identificação de dois pontos: a definição do termo força maior e o estabelecimento do princípio da relação de equilíbrio entre as partes. A Lei Trabalhista, em seu artigo 501, define força maior como “todo acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador, e para o qual este não concorreu, direta ou indiretamente”; e o Código de Defesa do Consumidor , no artigo 6º, estabelece o princípio da relação de equilíbrio entre as partes, ou seja, torna um direito do consumidor propor modificações em contratos que estabeleçam relações desproporcionais ou, nesse caso, quando uma das partes ficaria demasiado prejudicada, enquanto a outra se beneficiaria excessivamente.

Portanto, uma vez verificado o evento de força maior causado pela pandemia do novo coronavírus, as partes de um contrato devem direcionar-se a uma nova reformulação de suas cláusulas, ou até mesmo à dissolução do mesmo.

No entanto, será necessário analisar cada caso de forma particular, bem como avaliar qual a área do direito aplicável ao contrato em questão. Como estamos falando de um evento imprevisível tal qual a pandemia, é natural que ainda hajam incertezas em como proceder nas relações contratuais. E, nesse espectro, o Senado autorizou o Projeto de Lei nº 2.021/2020, que altera o Código de Defesa do Consumidor para anular as cláusulas de fidelidade em contratos firmados antes da decretação do estado de calamidade pública causado pelo novo coronavírus, que altera contratos de telefonia, televisão a cabo e diversos outros serviços, desonerando a economia das famílias mais afetadas pela crise.

Sabemos que contrato, por ser um negócio jurídico, advém do acordo das vontades e tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito, enquanto ato lícito. Independentemente da pandemia, pode-se considerar habitual a prática de cancelamento e rescisão contratual e, de fato, há jurisprudência para cancelamento de contrato abusivo conforme já decidido pelo Min. Ricardo Villas Bôas Cueva no julgamento do REsp n. 1.449.513/SP, em 2019.

Há diversas relações contratuais que podem ser solucionadas pelo poder público, outras não. Também existe a jurisprudência para reconhecer eventos imprevisíveis, como quando houve a desvalorização do real perante o dólar e também a greve dos caminhoneiros e suas consequências. Para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentam-se excludentes quando há “a necessariedade (fato que impossibilita o cumprimento da obrigação) e a inevitabilidade (ausência de meios para evitar ou impedir as consequências do evento)“, conforme REsp 1.564.705/PE, de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

É imprescindível que, sob o princípio da boa-fé, haja diálogo entre as partes para que se chegue a um denominador comum. Fornecedores devem propor alternativas ao consumidor, como postergar datas de eventos, entregas de produtos e serviços, sem que haja cobrança de taxas de remarcação, por exemplo.

O consumidor também pode buscar orientações do PROCON de seu estado. Como cada caso é único, não é possível afirmar se um serviço não prestado ou cancelado por conta da pandemia irá resultar em 100% de devolução dos valores pagos ou não. Há que se compreender que a crise tem afetado basicamente todos os setores da economia, desde o orçamento das famílias até pequenos e grandes comerciantes.

Portanto, é importante que haja, entre outras opções, a compreensão entre as partes e ampla negociação para que não ocorram grandes prejuízos para nenhuma delas, o adiamento da entrega de produtos e serviços sem cobranças adicionais, a diminuição significativa no valor da multa em decorrência de rescisão contratual, assim como a devolução parcial e/ou fracionada do dinheiro.

E para todos aqueles que, infelizmente, não podem contar com a boa vontade da outra parte, é necessário se resguardar com bastante informação e contar com o aparato jurídico disponível.

*Camilla Metzker é advogada securitária na Jacó Coelho Advogados. Tem especialização em Direito do Consumidor pela Faculdade Legale e em Políticas Públicas e Gestão de Segurança Pública pela Faculdade Estácio de Sá. E-mail: camilla.metzker@jacocoelho.com.br.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Proteção e Defesa do Consumidor (1990). Código de proteção e defesa do consumidor e legislação correlata. 5a ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496457/000970346.pdf?sequence=1>. Acesso em: 26 out. 2020.

BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, ano LXXXII, nº 184, p. 11937, de 09 ago. 1943. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/diarios/2403914/pg-1-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-09-08-1943>. Acesso em: 26 out. 2020.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.021/2020, da Senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que modifica o CDC para tornar nulas as cláusulas de fidelidade de contratos em vigor firmados antes da decretação de estado de calamidade pública pelo governo federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/11/propostas-mudam-cdc-para-elevar-protecao-ao-consumidor-em-calamidades. Acesso em: 26 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ºTurma). Recurso Especial n. 1.449.513/SP.  Cancelamento de contrato em período de remissão. Abusividade. Dano moral verificado. Recorrente: José Carlos Colocca. Recorrido: Metropolitan Life Seguros e Previdência Privada S.A. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Disponível em: http:// https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/174968105/andamento-do-processo-n-1449513-sp-do-dia-19-03-2015-do-stj?ref=feed. DJe 05.09.2019. Acesso em: 26 out. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ºTurma). Recurso Especial n. 1.564.705/PE. Impossibilidade Absoluta de Cumprimento da Obrigação. Inevitabilidade do Evento. Recorrente: Banco do Nordeste do Brasil S.A. Recorrido: Pedra de Amolar Agropecuaria LTDA. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Disponível em: http:// https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/387066083/recurso-especial-resp-1564705-pe-2014-0307210-4/inteiro-teor-387066142. DJe 05.09.16. Acesso em: 26 out. 2020.

[1] Camilla Metzker é advogada securitária na Jacó Coelho Advogados. Tem especialização em Direito do Consumidor pela Faculdade Legale e em Políticas Públicas e Gestão de Segurança Pública pela Faculdade Estácio de Sá. E-mail: camilla.metzker@jacocoelho.com.br.