O anunciado boom de RJ’s e a corrida por ações judiciais

*Leonardo Honorato Costa

Intelectuais, integrantes da imprensa e, mais recentemente, influenciadores digitais são figuras que, pela sua aceitação popular, possuem a tão honrosa quanto perigosa autoridade de impactar a sociedade. Ao gozarem, porém, de uma espécie de imunidade contra até mesmo a perda de sua reputação, muitos são seduzidos a colocar seu intelecto a serviço de ideias que “desembocam, por sua vez, tanto em conclusões equivocadas quanto em ações insensatas”, como advertido por Thomas Sowell, em seu inteligível livro “Os intelectuais e a sociedade”.

Todo aquele, portanto, que possui um grau de influência social, por mínimo que seja, deveria, ao se dignar a fazer uso de sua voz, fazê-lo com responsabilidade, apenas sobre pontos que possui conhecimento e – SEMPRE – refletindo sobre os efeitos concretos que podem advir de sua manifestação.

Não é, infelizmente, o que temos visto!

De fato, o sensível cenário que vivemos, em época de uma inesperada pandemia, tem gerado alguns dados até então inéditos. Me restrinjo, nesta análise, aos dados que alarmam para um avanço no número de pedidos de Recuperação Judicial. Instituições sérias e jurimetristas estão, responsavelmente, trazendo informações sobre a expectativa no aumento de pedidos de Recuperação Judicial no Brasil.

O problema, no entanto, não está nos dados (fidedignos!) que estão sendo divulgados, mas, sim, como as “referências” estão apreendendo e manipulando esses dados, reproduzindo, de modo insensato, conclusões irresponsáveis que não servem para outra coisa que não gerar pânico e reações indesejadas.

Primeiro, propaga-se a demonização do instituto da Recuperação Judicial, como se aumentar o número de pedidos fosse aumentar o número de “calotes”! Colocam, com isso, em descrédito popular um importante instituto que, conquanto necessite de avanços, é de suma importância para possibilitar o soerguimento de importantes empresas, principalmente as que sofrem neste período de inesperada escassez.

Dessa fake news de demonização do instituto da Recuperação Judicial emanam consequências ainda mais gravosas: a preocupante sensação de que o aumento no número de pedidos de Recuperações Judiciais importa na presunção de falência do mercado. Basta uma companhia aérea anunciar um pedido de Recuperação Judicial para que o mercado, fomentado pelos “sumos sacerdotes” da opinião pública, passe a considerar a bancarrota de todo o segmento de turismo!

Resultado: o bater de asas de uma borboleta em uma rede social causa, tempo depois, um tornado de ações judiciais visando, numa inescrupulosa corrida contra o tempo, salvaguardar o que for possível!

O medo (conscientemente?) gerado na população serve de combustível para alimentar-se uma necessidade e urgência no ajuizamento de ações judiciais contra o “mercado em declínio”, pregando-se que, quem não o fizer, nada receberá! Sob a espada de Dâmocles, os potenciais credores são forçados a uma escolha de Sofia: ou gastam com ajuizamento de ação urgente ou nada recebem!

Pois bem.

A intenção que tenho ao fazer, nesta análise, o uso de minha voz é para, dentro de minhas limitações, tentar trazer contornos mais sensatos a essa intencional propagação do medo. Ajuizar uma ação judicial, por si só, o quanto antes, de modo abrupto e impensado, para tentar “fugir” de um anunciado pedido de Recuperação Judicial não tem quaisquer poderes mágicos de se retirar o crédito do futuro concurso de credores!

Abrakadabra!

Segundo o artigo 49 da lei nº 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência), “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. O que define, portanto, se o crédito será submetido ao processo de Recuperação Judicial ou não, é a data de sua existência. Se existia, à época do pedido, se submeterá ao concurso de credores, do contrário, não se submeterá.

A data do protocolo da ação, desse modo, não influenciará em caso de um iminente pedido de Recuperação Judicial. É uma irresponsabilidade dizer o contrário.

Para ações em que se visem constituir um crédito, há uma discussão jurisprudencial sobre qual seria o elemento caracterizador de existência do crédito, para fins de submissão ou não à Recuperação Judicial: a data do fato gerador ou a do trânsito em julgado da sentença que o reconheceu.

Nenhum deles, portanto, a data de ajuizamento de uma ação.

Ou seja, quando alguém sofre algum tipo de dano por fato ocorrido antes do pedido de Recuperação Judicial, mas esse dano precise ser certificado e liquidado em processo de conhecimento, cujo trânsito em julgado se dará após o pedido de Recuperação Judicial, há, atualmente, divergência sobre se tal crédito se submeterá à Recuperação (considerando a data do fato que gerou o dano) ou não (considerando que o crédito só veio a existir com o trânsito em julgado da sentença que o certificou).

Essa questão será submetida a julgamento e está cadastrada como Tema 1.051 na base de dados do Superior Tribunal de Justiça, contendo a seguinte descrição: “Interpretação do artigo 49, caput, da Lei 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece”.

Independentemente do que definir o Superior Tribunal de Justiça, a data do ajuizamento da ação não interferirá quanto a pedidos de Recuperação Judicial iminentes (a se justificar um abrupto ajuizamento da noite para o dia). Se, portanto, a Recuperação Judicial de um potencial devedor se avizinha, de nada adiantará pressa desmedida, com protocolo de ação ao raiar do dia, uma vez que dificilmente o trânsito em julgado ocorrerá em poucos dias ou meses (caso, inclusive, o STJ entenda pela data do trânsito e não do fato gerador).

Melhor, em qualquer caso, que se analise, com responsabilidade, seriedade e estratégia, qual a melhor medida a ser tomada, judicial e, com mais razão, extrajudicial. Sem morosidade, mas igualmente sem uma pressa que não encontrará razoabilidade, como se propaga.

Se grande parte das “referências sociais” está se manifestando de modo irresponsável, em tempo que exige reflexões dobradas antes de qualquer pronunciamento, cabe à sociedade separar o que é fake do que é sensato! Não nos façamos de tolos ou – quem tiver voz – insensatos!

*Leonardo Honorato Costa é  advogado e sócio do GMPR – Gonçalves, Macedo, Paiva & Rassi Advogados; master of laws em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro (FGV/RJ); pós-MBA em Governança Corporativa e Compliance pela Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro (FGV/RJ); e professor de Direito Empresarial.