Nota sobre prisão preventiva à luz da Lei do Pacote Anticrime

*Carlos Eduardo Rios do Amaral

A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a chamada Lei do Pacote Anticrime, introduziu uma grande modificação na questão dos requisitos para a decretação da prisão preventiva no processo penal brasileiro.

Vejamos a inovação trazida pela Lei nº 13.964/2019, ao alterar a redação do Art. 312 do Código de Processo Penal:

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Como se vê, as quatro hipóteses para a decretação da prisão preventiva permaneceram inalteradas: (1) garantia da ordem pública, (2) da ordem econômica, (3) por conveniência da instrução criminal ou (4) para assegurar a aplicação da lei penal. Entretanto, para a decretação da prisão preventiva o Pacote Anticrime, além da (1) prova da existência do crime e do (2) indício suficiente de autoria, traz mais um requisito obrigatório, qual seja, o (3) perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

A modificação introduzida pela Lei nº 13.964/2019 à redação do Art. 312 do CPP é substancial, inédita mesmo em nosso ordenamento processual penal tradicional. O novo diploma legal será um verdadeiro divisor de águas em tema de prisão preventiva na doutrina e jurisprudência doméstica.

Antes do advento da Lei nº 13.964/2019, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, todas as hipóteses de decretação da prisão preventiva – (1) garantia da ordem pública, (2) da ordem econômica, (3) conveniência da instrução criminal ou (4) se assegurar a aplicação da lei penal – eram objetivamente tidas como caraterizadores de um estado automático e presumido de perigo, de risco, para o processo, para o Estado ou para a sociedade.

A partir da nova lei do Pacote Anticrime, a decretação da prisão preventiva passará a exigir uma fundamentação muito maior e complexa. A demonstração do requisito da prova do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado retira por completo o caráter de estado automático e presumido de perigo ou de risco para o processo gerado apenas pela presença das tradicionais quatro hipóteses da decretação da prisão preventiva.

Senão, vejamos alguns exemplos já à luz da nova Lei nº 13.964/2019.

No caso de decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública vejamos as seguintes hipóteses: o acusado continua a invadir domicílio alheio para furtar algumas goiabas no quintal do vizinho, o agressor descumpre medida protetiva dirigindo-se à escola do filho e outro insiste em vilipendiar cadáver. Antes da Lei nº 13.964/2019, caracterizado nos três exemplos a hipótese de reiteração criminosa, poderia o juiz decretar a prisão preventiva de quaisquer dos acusados para garantia da ordem pública.

Agora, nos exemplos, deverá o juiz em sua decisão, fundamentadamente, discorrer a respeito do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado decorrente do novo furto de algumas goiabas, do descumprimento da medida protetiva dirigindo-se à escola do filho e do novo vilipêndio ao cadáver.

A definição de “perigo” não é plasma, nem fluida. Perigo é perigo! Ponto final. Não se pode confundir a nova lei do Pacote Anticrime com Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa! Perigo consiste numa situação em que está ameaçada a existência de uma pessoa ou de uma coisa.

O sujeito novamente furtou os doces invadindo quintal alheio para terminar a receita de seu doce caseiro, o pai descumpriu medida protetiva para entregar o presente de Natal de seu filho menor e o outro insiste em perturbar o cadáver de seu parente desafeto.

Nestes exemplos, onde está a situação de perigo? Em nenhuma dessas hipóteses a nova Lei nº 13.964/2019 permitirá a decretação da prisão preventiva do acusado, mesmo insistindo este na reiteração criminosa. A invasão de quintal com o furto de goiabas, o atropelo da medida protetiva para um presente chegar às mãos de filho e o vilipêndio à alma do morto não caracterizam a situação de perigo.

A nova Lei nº 13.964/2019 rompe uma tradição de 77 anos! O legislador de 1941 acreditava que todas as hipóteses do Art. 312, uma vez presentes, eram bastante e suficientes para caracterizar o estado de perigo, autorizando a prisão do acusado.

No caso de decretação da prisão preventiva para se assegurar a aplicação da lei penal serão (muito!) mais sentidos os efeitos da modificação trazida pelo Pacote Anticrime. Tomemos como exemplo o agressor que comete feminicídio (mata a esposa) e foge para outro Estado bem distante. Neste novo domicílio o agressor, dando nome falso, passa a viver anos do cultivo da terra e constituindo nova família, não volta a delinquir. Anos depois, o Ministério Público descobre o seu paradeiro e, assim, requer sua prisão preventiva para se assegurar a aplicação da lei penal.

E a prova do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, associada à garantia da aplicação da lei penal, como agora exige a Lei nº 13.964/2019?

Neste exemplo dado, não há estado de perigo. A vítima está morta, o acusado agora vive do cultivo da terra e constituiu nova família, não voltou a delinquir. Não poderá o juiz olvidar o novo requisito do Pacote Anticrime, o estado de perigo. Não há mais presunção automática de estado de perigo gerado apenas pela prova da existência do crime e indício suficiente de autoria associada à fuga do acusado.

E o Pacote Anticrime ainda foi além, muito além:

“Art. 312 …

§2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.

“Art. 313 …

§2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”.

“Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.

§1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

§2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

A situação de perigo ocasionada pela liberdade do acusado, assim, deverá ser calcada em fatos novos e contemporâneos. Não demonstrada na decisão que decreta a prisão preventiva os fatos novos e contemporâneos que ensejariam o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado a decisão será considerada omissa, ensejando a oposição de embargos de declaração.

O mesmo raciocínio se aplica às hipóteses de decretação da prisão preventiva para garantia da ordem econômica e por conveniência da instrução criminal. Deverá ser demonstrado o estado de perigo gerado pela liberdade do acusado, através de fatos novos e contemporâneos.

A prisão preventiva de determinado acusado visando a recomposição de valores vultosos ou do patrimônio de entidade previdenciária, a magnitude da lesão causada no mercado financeiro, apartado de fatos novos e contemporâneos caracterizadores de uma situação de perigo atual gerada pela liberdade do acusado, encontraria guarida à luz da Lei nº 13.964/2019?

Talvez a hipótese de decretação da prisão preventiva por conveniência da instrução criminal seja a menos sensível à modificação introduzida pela Lei nº 13.964/2019. Toda ameaça à integridade de uma testemunha, sem dúvida, caracteriza caso de estado de perigo. Entretanto, essa ameaça deverá ser enfrentada em confronto com fatos novos e contemporâneos.

Desde sua vigência em 1942 o CPP adotava a sistemática de que todas as hipóteses de prisão preventiva, presente o indício suficiente de autoria e a prova do crime, eram geradoras de absoluto e automático estado de perigo ao processo. O Pacote Anticrime – bem ou mal – veio abolir essa presunção, ilidida pelo novo requisito legal do “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

*Carlos Eduardo Rios do Amaral é defensor público do Estado do Espírito Santo