Liberdade religiosa, Direito Canônico e o Munus Docendi

*Victor Naves

INTRODUÇÃO

Ao longo da história, o Estado, enquanto organização política da sociedade, e a Igreja, considerada como comunidade dos que professam a mesma fé religiosa, foram se autocompreendendo de modos diversos, o que sempre gerou tensões entre as duas.

O Estado inicialmente entendia sua missão como de cuidar tanto das questões temporais como também das questões espirituais. Com o advento da Revolução Francesa e do Ateísmo, o Estado passou a ter uma visão anticlerical, excluindo e reprimindo o fator religioso para os espaços exclusivamente privados.

Sob a perspectiva histórica, percebemos que da Igreja Primitiva até os dias atuais houveram avanços que corroboraram no reconhecimento da liberdade religiosa, de associação e de consciência como direitos naturais e, posteriormente, positivados
nos diversos ordenamentos jurídicos.

O primeiro documento civil que reconheceu o direito à liberdade religiosa foi o Edito de Milão, do Imperador Constantino, no ano 313. A partir deste documento, o Império Romano reconheceu aos seus súditos a liberdade de professar a própria religião, inclusive a cristã. Esse documento durou 63 anos, pois o Imperador Teodosio estabeleceria o cristianismo como religião oficial do Império, anos após.

Em menos de quatro séculos o cristianismo passou de perseguida a tolerada, e pouco após, adotado como a religião oficial do Império Romano. Dezesseis séculos depois, Roma segue sendo cristã, e o cristianismo como uma das religiões mais praticadas e difundidas no mundo todo.

Nesse contexto, o Concílio Vaticano II, no que diz respeito a questão da Liberdade Religiosa, teve como um de seus frutos a Declaração Dignitatis Humane. Esta declaração afirma a Liberdade Religiosa como um direito fundamental, onde o homem deve buscar a verdade livre de qualquer coação do Estado ou de outros homens.

[…] todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte
dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade
humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja
forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de
proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou
associado com outros, dentro dos devidos limites.

A relação entre Estado e Igreja hodiernamente, ante a pluralidade de denominações religiosas, consiste na busca do ponto de neutralidade, onde seja reconhecida a importância do valor religioso, ao mesmo tempo em que não é privilegiada qualquer confissão, garantindo a todos seu livre exercício e expressão, de modo a reconhecer a importância do fator religioso para que o homem possa atingir sua plenitude.

Com o reconhecimento da laicidade do Estado, se reconhece a separação institucional entre religião e política, que afirma justamente a neutralidade do Estado frente ao fator religioso. Contudo, essa neutralidade e imparcialidade não se compadecem com a antirreligiosidade.

A laicidade deve ser entendida não sob uma perspectiva negativa e repressiva do fator religioso, mas sim a partir de conceitos que possibilitem a cooperação entre Igreja e Estado que possibilite o pleno desenvolvimento econômico, social e, principalmente, espiritual de todos.

O DIREITO CANÔNICO E A LIBERDADE RELIGIOSA

A Igreja, como comunidade dotada de uma missão, foi enviada ao mundo a fim de anunciar a Cristo e proclamar o Evangelho a todos os povos e criaturas, em virtude do mandato divino (Mt 28,19). Tal missão não deriva e nem depende de concessão do Estado ou de qualquer tipo de autorização de autoridades humanas, nem de reconhecimento histórico.

O cânon 747 §1º do CIC, ao tratar do depósito da fé, ou seja, de todo o complexo de normas e verdades cristãs, que se baseiam na Revelação da Palavra de Deus, afim de ressaltar a missão de envio que a fé implica, aborda primeiro o “dever” da Igreja, para somente depois, abordar seu “direito”.

Cân. 747 — § 1. A Igreja, à qual Cristo Senhor confiou o depósito da
fé, para que ela, assistida pelo Espírito Santo, guardasse
inviolavelmente, perscrutasse mais intimamente, anunciasse e
expusesse fielmente a verdade revelada, tem o dever e o direito
originário, independentemente de qualquer poder humano, de pregar
o Evangelho a todos os povos, utilizando até meios de comunicação
social próprios.

Portanto, constituem-se como deveres da Igreja com relação ao depósito da fé: a) protege-lo com zelo, preservando sua integridade e pureza, evitando qualquer redução, alteração ou deformação; b) aprofundar seu significado; c) anuncia-lo.

Já o parágrafo 2º do mesmo cânon, reafirma a ideia de que tais deveres se constituem, na mesma proporção, direitos, na medida em que não está sujeito a restrições ou óbices da autoridade humana, exceto aqueles que visem a segurança e saúde públicas.

Sendo assim, a Igreja tem o direito de anunciar com total liberdade os princípios morais, que estão intrinsicamente ligados com as verdades dogmáticas, inclusive aquelas  relacionadas à ordem social e política.

§ 2. À Igreja compete anunciar sempre e em toda a parte os princípios
morais, mesmo de ordem social, bem como emitir juízo acerca de
quaisquer realidades humanas, na medida em que o exijam os
direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas.
O Concílio Vaticano II, na declaração Dignitatis Humane, afirmou tal princípio:
“Pela vontade de Cristo, a Igreja Católica é um Mestre da verdade e
sua missão é proclamar e ensinar de maneira autêntica a Verdade
que é Cristo, e ao mesmo tempo declarar e confirmar com sua
autoridade os princípios de ordem moral, que brota da própria
natureza humana. ” (Dignitatis humanae, n. 14, 2).

Os direitos fundamentais da pessoa humana e a salvação das almas são valores que orientam o juízo da Igreja sobre a moralidade e os assuntos humanos, dentre os quais se incluem também os assuntos políticos. Portanto, a Igreja detém a legitimidade para proclamar os princípios morais sobre qualquer assunto humano, sempre e em todos os lugares (GS, 76).

AS DIVERSAS FACES DA LIBERDADE RELIGIOSA

A Liberdade Religiosa, antes de ser reconhecida pelo ordenamento civil como direito fundamental, é um direito natural. Para o ilustre jurista catalão, Javier Hervada, o direito natural não necessita estar escrito; não é criado pela sociedade; nem é formulado pelo Estado; ele não depende de lei alguma; é válido universalmente, e é imutável.

O Direito Natural tem por fundamento e por título a natureza e essência humana. Como todos os homens são pessoas igualmente em essência, a natureza é a mesma em
todos os lugares e em todos os tempos.

A liberdade religiosa, enquanto direito natural, tem sua gênese na liberdade de consciência e na própria dignidade da pessoa humana. Os homens, que são pessoas dotadas de razão e vontade livre, são levados por sua própria natureza e também moralmente, a procurar a verdade. Nesse sentido, a Declaração Dignitatis Humane dispõe:

“Nessa busca, ao conhecer e aderir à verdade, os homens ordenam toda a sua vida conforme suas exigências. Cada um tem o direito de procurar a verdade em matéria religiosa, de modo a formar juízos de consciência.

O homem ouve e reconhece as imposições da lei divina por meio da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua atividade, para chegar ao seu fim, que é Deus. E, por isso, não deve ser forçado a agir contra a própria consciência, e nem impedido de atuar segundo ela, sobretudo em matéria religiosa.

O exercício da religião, por sua natureza, consiste, basicamente, em atos internos, voluntários e livres, pelos quais o homem se ordena diretamente para Deus. Tais atos
não podem ser nem impostos nem impedidos por uma autoridade meramente humana.
Por outro lado, a própria natureza social do homem exige que este exprima externamente os atos religiosos interiores, entre em comunicação com os demais em assuntos religiosos e professe de modo comunitário a própria religião.

Os atos religiosos, pelos quais os homens, privada e publicamente, se orientam para Deus segunda sua própria convicção, transcendem por sua natureza a ordem terrena e temporal. Por este motivo, a autoridade civil, que tem como fim próprio olhar pelo bem comum  temporal, e deve reconhecer e favorecer a vida religiosa dos cidadãos, do contrário, excede os seus limites quando presume dirigir ou impedir os atos religiosos.”

Portanto, temos que a liberdade religiosa deve ser considerada sob diversos prismas, ante as características peculiares da missão apostólica da Igreja (a) a liberdade de crença e consciência (b) a liberdade de culto e de expressão (c) a liberdade de organização religiosa e de associação.

Cada uma das perspectivas acima discriminadas representa um determinado viés da liberdade religiosa, que detém a mesma condição de direito natural do homem. A liberdade de crença e consciência dizem respeito ao íntimo da pessoa, onde cada qual, de acordo com sua consciência, deve buscar a verdade, de acordo com suas próprias convicções. Por outro lado, a liberdade de culto e de expressão dizem respeito aos atos litúrgicos, objetos e sentimentos religiosos, por meio dos quais a liberdade de crença e consciência se manifestam. Por fim, a liberdade de organização religiosa e de associação, que diz respeito ao direito do homem de estruturar-se e organizar-se, afim de alcançar seus objetivos.

CONCLUSÃO

O Papa Bento XVI, em seu discurso em Westminster Hall, no encontro com representantes da sociedade britânica durante a viagem apostólica ao Reino Unido em 2010 afirmou:

[…] “onde pode ser encontrado o fundamento ético para as escolhas
políticas? A tradição católica afirma que as normas objetivas que
governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do
conteúdo da Revelação. Em conformidade com esta compreensão, o
papel da religião no debate político não consiste tanto em oferecer
tais normas, como se elas não pudessem ser conhecidas pelos não crentes – muito menos em propor soluções políticas concretas, o que
está totalmente fora da competência da religião -, mas, sobretudo,
em ajudar a purificar e lançar luz sobre a aplicação da razão na
descoberta dos princípios morais objetivos. ” […]

A Igreja, enquanto instituição divina e humana, tem o dever e o direito de prover pela salvação das almas, anunciando o Evangelho e levando Cristo a todos, em todos os cantos do mundo.

A vida cristã deve inclinar os indivíduos para determinadas soluções, em certas situações concretas, mas a Igreja, devido a sua missão apostólica não está ligada a nenhum sistema político ou econômico.

Já os fiéis leigos Católicos ordenam suas realidades terrestres de acordo com o espírito do Evangelho, mas não o fazem em nome da Igreja, mas como cidadãos do Estado, de acordo com a sua própria consciência e suas próprias responsabilidades.

Portanto, temos que o direito à liberdade religiosa, não é um fim em si mesmo, mas existe para garantir a todos a plena liberdade, no sentido de que, cada qual, de acordo com sua consciência, possa buscar e viver a verdade, de forma pública ou privada, individual ou coletivamente.

*Victor Naves é advogado, diretor jurídico da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia – UNIJUC; Mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; Especialista em Direito Constitucional e Administrativo

Referências
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. Promulgado por São João Paulo II, Papa.
Tradução Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. São Paulo: Loyola, 1987.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Declaração Dignitatis Humane Sobre a
Liberdade Religiosa. Disponível em
<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_decl_19651207_dignitatis-humanae_po.html >
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes Sobre
a Igreja no Mundo Atual. Disponível em <
http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html>
HERVADA, Javier. O que é Direito? A moderna resposta do realismo jurídico. São
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MARZOA, J. Miras.RODRIGUEZ,Ocaña (coord.) Comentario Exegético Al Código de
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RATZINGER, Joseph Bento XVI. Liberar a Liberdade: Fé e Política no Terceiro Milênio.
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