Credores híbridos: o desmembramento do pagamento do crédito trabalhista

*Gabriela Espósito da Silva Ribeiro

O crédito trabalhista compõe uma das quatro classes de créditos sujeitos à recuperação judicial, nos termos da Lei 11.101/05.

Com viés prioritário, tendo em vista se tratar de verbas de natureza alimentar (salário), o crédito trabalhista é privilegiado em diversos sentidos, como a não aplicação de deságio, e pagamento em menor tempo, sendo certo, nos termos da doutrina e jurisprudência, que o prazo de até um ano para pagamento dos credores trabalhistas, previsto no artigo 54 da Lei 11.101/05, é contado a partir da concessão da recuperação judicial.

Esse prazo para pagamento, muito preocupa as empresas em recuperação judicial, considerando que o passivo trabalhista pode, muitas vezes, representar um grande numerário, que deve ser quitado em pouco tempo, se comparado à carência que pode ser concedida à outras classes de credores (credores com garantia real — classe II, credores quirografários — classe III, e credores ME e EPPs — classe IV).

E sem dúvidas, com base nessa discussão, houve mudança considerável quanto ao prazo de pagamento dos credores classe I, nos termos da Lei 14.112/20, que atualizou a legislação referente à recuperação judicial, extrajudicial e à falência.

Ao artigo 54 da Lei 11.101/05, foi adicionado o parágrado 2º, que estabelece que o prazo para pagamento dos credores trabalhistas pode ser estendido em até dois anos, se, cumulativamente, (i) o plano de recuperação judicial apresentar garantias julgadas suficientes pelo juiz; (ii) for tal previsão for aprovada pelos credores trabalhistas, no quorum previsto em lei; (iii) restar garantida a integralidade do pagamento dos créditos trabalhistas.

Essa flexibilização demonstra que, apesar da necessária proteção aos credores, há que se observar que o instituto da recuperação judicial visa auxiliar a empresa a liquidar seu passivo, e condições muito engessadas de pagamento podem inviabilizar o tão sonhado soerguimento.

Nesse pensamento, vem à tona a discussão sobre a possibilidade ou não de limitação do valor devido ao credor trabalhista, ou seja, possibilidade de desmembrar o crédito em duas partes, como uma linha de corte, o que já acontecia no instituto da falência, nos termos do artigo 83, I da Lei 11.101/05.

O mencionado artigo prevê a possibilidade de limitar o pagamento dos credores trabalhistas em até 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos, sendo que os credores cujos créditos ultrapassem esse limite, deverão receber a diferença como crédito quirografário — classe III, sem privilégios, ao qual pode ser aplicado deságio e maior prazo de carência, por exemplo.

Há alguns anos, essa possibilidade era negada às empresas em recuperação judicial, tendo se iniciado uma mudança de pensamento no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do Enunciado XIII do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, aprovado em março de 2020, que prevê:

“Admite-se, no âmbito da recuperação judicial, a aplicação do limite de 150 salários mínimos, previsto no art. 83, I, da Lei nº 11.101/2005, que restringe o tratamento preferencial dos créditos de natureza trabalhista (ou a estes equiparados), desde que isto conste expressamente do plano de recuperação judicial e haja aprovação da respectiva classe, segundo o quórum estabelecido em lei.”

Todavia, somente esse enunciado não foi o suficiente para consolidar esse entendimento em outros Tribunais, até que o Superior Tribunal de Justiça — STJ, em recente decisão, nos autos do Recurso Especial nº 1.812.143 – MT (2019/0121355-1), se posicionou de forma clara sobre a possibilidade de limitação do crédito trabalhista, também na recuperação judicial.

Em que pese a possibilidade de aplicação do artigo 83, I da Lei 11.101/05 à recuperação judicial, o que as empresas devem se atentar é que a validade dessa medida depende de sua previsão em cláusula no plano de recuperação judicial, que deverá ser aprovada pelos credores, e, do contrário, não terá validade.

O Direito, como ciência em constante mudança, principalmente no Brasil, onde uma das Fontes do Direito é o costume, ou seja, a lei se ajusta à sociedade, tem essa característica de evolução, o que nos permite repensar alguns conceitos e entendimentos, até então tidos como imutáveis.

Sobre a limitação dos créditos trabalhistas, agora, parece claro o que sempre esteve à nossa frente, já que a recuperação judicial permite que os credores tenham a livre negociação do plano em assembleia geral de credores, inclusive, podendo decidir sobre algo, mesmo que a lei preveja de forma diversa, pelo Princípio da Autonomia da Vontade, previsto no artigo 35 da Lei 11.101/05.

Assim como qualquer outra forma de pagamento levada à votação dos credores, é a limitação dos créditos trabalhistas, que mais do que pelo juízo, deve ser analisada pelos próprios credores, que, afinal, são os únicos alvos dos ônus e bônus com a nova pactuação.

Essa é, com certeza, mais uma das tantas formas de composição entre credores e empresa em recuperação judicial, que pode, quando do encontro de vontades, facilitar o pagamento e recebimento dos créditos, a fim de alcançar o interesse não apenas da empresa em recuperação judicial, mas também dos credores, que passam a aprovar planos mais factíveis em termos de cumprimento.

*Gabriela Espósito da Silva Ribeiro é advogada na DASA Advogados