Administração pública e tecnologia: a dicotomia entre o avanço digital e a democratização de acesso aos serviços públicos

*Brunna Frota Silva

O tão aguardado futuro tecnológico já é nossa realidade! E o Direito como ciência social não pode se manter alheio às novas práticas da sociedade.

A velocidade com que as mudanças vêm ocorrendo exige dos operadores jurídicos similar rapidez de interpretação para lidar com questões até então inéditas. O novo de ontem já se tornou obsoleto em apenas um clique.

Nesse sentido, destaca-se que aquilo que outrora foi considerado extremo avanço no âmbito da Administração Pública, a exemplo dos processos eletrônicos e a implementação do SEI – Sistema Eletrônico de Informações, hoje em dia já é visto como elemento básico, sendo, portanto, regra geral nos três Poderes.

Por outro lado, ressalta-se que a pandemia do Coronavírus e as medidas de distanciamento social proporcionaram novas ferramentas aptas a centralizar as interações, sejam pessoais, laborais ou financeiras, nos meios digitais. Exemplo disso encontra-se na popularização de plataformas de reuniões virtuais (zoom, meet, teams) ou ainda na criação de aplicativos que possibilitam consultas médicas virtuais (no Estado de Goiás, a OAB/GO desenvolveu o ADVMED[1] que oferece ao advogado goiano marcação de consultas, acesso a prontuários, agendamento de exames laboratoriais, entre outros.)

Assim sendo, notadamente na esfera da Administração Pública, as ferramentas digitais devem ser vistas como aliadas do gestor público no atendimento da eficiência e celeridade dos processos administrativos.

Acerca disso, mostra-se interessante recente decisão do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais – TCE/MG que autorizou o uso do PIX, um sistema criado pelo Banco Central para transferência financeira instantânea, no âmbito da Administração Pública, seja na condição de pagadora ou de recebedora, desde que observadas todas as normas legais e contábeis tradicionalmente aplicáveis às movimentações bancárias.[2]

Em similar direção, menciona-se que o Estado de Goiás se tornou o 7º Estado que mais oferta serviços públicos digitais no país, graças à implementação da plataforma Expresso Goiás que oferece mais de 70 (setenta) serviços, os quais vão desde a emissão de certidões negativas de débitos à solicitação de medicamentos de alto custo.

Nada obstante, em meio a este avanço tecnológico, um dos grandes desafios da Administração é de justamente encontrar formas adequadas e   proporcionais para regular a realidade que se processa.

Neste aspecto, um dos fatores a ser considerado é a linha tênue entre a inclusão – proporcionada pela tecnologia – e a exclusão de grande parcela da população em relação aos serviços estatais – ocasionada pelo regrado acesso aos meios digitais.

Situação desse tipo foi vista nesta pandemia em relação às aulas virtuais. Segundo pesquisa do IBGE[3], ao fim de 2019, 4.3 milhões de estudantes brasileiros não tinham acesso à internet, seja por falta de dinheiro para contratar o serviço ou comprar um aparelho seja por indisponibilidade do serviço nas regiões onde viviam. Destes, 4,1 milhões estudavam na rede pública de ensino.

De igual modo, relembra-se que no início deste ano o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN regulamentou à nível nacional a expedição dos documentos digitais dos veículos. Assim, o CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo) não mais seria expedido em papel moeda, mas tão somente em formato digital.

As vantagens desse novo método são facilmente percebidas, sendo a principal delas refletida na economia com as impressões. O Estado de Goiás foi o primeiro a adotar essa modalidade no país, deixando de imprimir e enviar via Correios 2,3 milhões de documentos por ano. A mudança gerou uma economia de R$ 5,9 milhões entre custos de impressão e envio[4].

No entanto, mesmo diante desses avanços, que diretamente satisfazem o interesse público ao proporcionar economia aos cofres públicos e ao próprio cidadão que desembolsará valor menor em taxas, esta medida de implementação de documentos digitas foi suspensa pelo Poder Judiciário.

Por meio de decisão liminar do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) os Detrans foram obrigados a voltarem a emitir a versão física do CRLV. Para tanto, a desembargadora relatora ressaltou que a resolução do Contran poderia significar a exclusão de milhões de brasileiros que não têm acesso à internet.

Outra situação peculiar que há tempos já vem sendo discutida no âmbito dos tribunais, antes mesmo da popularização de aplicativos como WhatsApp e Telegram, diz respeito à convocação de aprovados em concursos públicos.

Assim, não são raros os casos em que a Administração Pública convoca os aprovados apenas por meio de publicação nos Diários Oficiais. Desse modo, se no passado esta única hipótese de publicidade já se mostrava absurda, hoje em dia, com a gama de possibilidades de se realizar uma notificação eficaz do candidato, é inviável lhe impor o ônus de acompanhar diariamente as publicações oficias dos órgãos.

Nesse sentido, destaca-se que se trata de entendimento consolidado das Cortes Superiores[5] que este tipo de convocação (apenas em Diário Oficial) representa violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, especialmente quando transcorrido considerado lapso de tempo entre a divulgação do resultado e a referida convocação.

Estas indagações mostram-se oportunas no que tange ao estudo dos impactos das novas tecnologias sobre a administração pública e o direito administrativo de forma geral, estudo esse que, apesar da era tecnológica, ainda está em fase prematura no nosso país.

Cumpre ao gestor público o desafio de balizar constantemente o avanço tecnológico na satisfação da celeridade, eficiência e publicidade dos processos administrativos sem se esquivar da realidade social de parcela da população que, ainda hoje, possui baixa adesão digital. Conseguir o equilíbrio dessa balança de interesses será a fórmula para a democratização da administração pública.

*Brunna Frota Silva é especialista em Direito Público; Membro da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB/GO; Assessora Jurídica do Departamento Estadual de Trânsito do Estado de Goiás – DETRAN/GO.

[1] Disponível em: https://www.casag.org.br/noticias/saude/casag-anuncia-servico-inedito-para-advogados-goianos/.

[2] TCE/MG. Processo nº 1.098.452, Conselheiro Cláudio Terrão;

[3] Disponível em:< https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/04/segundo-ibge-43-milhoes-de-estudantes-brasileiros-entraram-na-pandemia-sem-acesso-a-internet.shtml>.

[4] Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/reducao-de-custos-e-taxas-no-detran-go-gera-economia-de-r-187-milhoes-301860/.

[5] STJ, MS 15450/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/10/2012, DJe 12/11/2012; STJ, MS 16.603/DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Rel. p/ Acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, Primeira Seção, julgado em 24/08/2011, DJe 02/12/2011.