A possibilidade de se anular o leilão extrajudicial por preço vil

Leandro Marmo

A questão relativa a possibilidade de se anular o leilão extrajudicial, quando a arrematação tenha sido efetivada por lance vil, é pacífica quando se trata de leilão judicial. Todavia é polêmica e está longe de haver unanimidade na doutrina[1] e na jurisprudência, quando se trata de leilão extrajudicial. No entanto, do meu ponto de vista, conforme demonstrarei a seguir, parece-me patente e inequívoco que o lance vil, mesmo no leilão extrajudicial, é ilegal, e assim sendo, passível de ser anulado.

A sistemática de lances mínimos estabelecidos pela Lei 9.514/97 para a venda do imóvel alienado fiduciariamente em leilão extrajudicial preceitua que, no primeiro leilão somente pode ser ofertado lance que seja igual ou superior ao valor do imóvel, via de regra, ninguém oferece nenhum lance. Já no segundo leilão o art. 27, §2° da Lei 9.514/97 estabelece como limite mínimo para a venda do imóvel, que o valor do lance deva ser “igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”, em outras palavras, quis dizer a lei que, deve ser suficiente apenas e tão somente para a satisfação do crédito do credor fiduciário, independentemente de qual seja o valor total do imóvel, e o valor total da dívida, ignorando a possibilidade de ocorrências de situações absurdas, tal como a arrematação por preço vil.

O referido parâmetro em determinadas situações é extremamente desarrazoado e desproporcional, colidindo frontalmente com normas infraconstitucionais e constitucionais, posto que, teoricamente um imóvel que vale R$10 milhões de reais, poderá ser leiloado extrajudicialmente, no segundo leilão, por apenas R$10 mil reais, se este valor do lance for “igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.”

Houve efetivamente uma lacuna na Lei 9.514/97, ao deixar de dispor sobre um parâmetro de preço mínimo de venda do imóvel, o que torna possível, a aplicação por analogia – art. 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[2], pelo diálogo das fontes do direito, da vedação da venda em leilão extrajudicial do imóvel por menos que 50% do valor do imóvel, como prevê o art. 891, §° único do CPC[3].

A interpretação da Lei 9.514/97 deve se dar em harmonia com todo o ordenamento jurídico, ao realizar tal atividade, verificamos que há um enorme arcabouço de normas que vedam peremptoriamente (I) o exercício abusivo de um direito, (II) o enriquecimento sem causa, (III) determinam a mitigação dos prejuízos do devedor, e (IV) que impõe que a execução deve se dar da forma menos onerosa possível.

Interessante colacionar e trazer ao conhecimento do leitor alguns julgados que ilustram e demonstram que, de fato é possível e tem sido admitida a alegação e anulação de leilões extrajudiciais, de imóveis alienados fiduciariamente, quando os mesmos são arrematados por preço vil. Vejamos:

AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. BEM IMÓVEL. LEILÃO. ALEGAÇÃO DE PREÇO VIL. Trata-se de alienação fiduciária de bem imóvel em que se presume a validade do procedimento da constituição em mora e da consolidação da propriedade, que ocorrem junto ao Oficial do Registro de Imóveis com a força de fé pública e por efeito da lei, nos termos do artigo 26, § 1º, da Lei nº 9.514/97. Assim, não se mostra suficiente a alegação da falta da notificação. É preciso examinar os termos do procedimento extrajudicial, que, em princípio, ocorreu, a contrário do que se alega, salvo demonstração cabal da invalidade do procedimento extrajudicial junto ao Registro de Imóveis. Na alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, por força da lei, é o procedimento que justifica a constituição em mora e a consolidação da propriedade por força da lei, seguindo-se os leilões obrigatórios conforme os requisitos da lei. No primeiro leilão, exige-se o lance mínimo que equivale ao valor do imóvel para o leilão regulado no contrato, no segundo leilão, basta o valor da dívida, com o que a relação entre as partes ficará resolvida. O instituto jurídico está concebido assim e, na sua concepção, é discutível a alegação de preço vil por analogia às alienações nos processos de execução, que se submetem a outra regulação jurídica. (TJ-RS – AGV: 70061326575 RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Data de Julgamento: 24/09/2014, Vigésima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 26/09/2014)

“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA CONCEDIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. SUSPENSÃO DE LEILÃO EXTRAJUDICIAL E DE AQUISIÇÃO POR EVENTUAL ARREMATANTE. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. INDÍCIOS DE LEILÃO POR PREÇO VIL. AUSÊNCIA DE NECESSÁRIA INTIMAÇÃO PESSOAL DOS DEVEDORES DA DATA DO LEILÃO. DISPOSIÇÕES DO DECRETO-LEI 70/66 QUE SE APLICAM AOS CONTRATOS REGIDOS PELA LEI 9.514/97. PRECEDENTES DO STJ E TJSP. LIMINAR MANTIDA.

  1. No caso concreto, havia verossimilhança das alegações dos autores agravados, bem como perigo de dano grave ou de difícil reparação, na medida em que o laudo de avaliação de fls. 228/243 dos autos principais, nada obstante elaborado unilateralmente, apurou uma diferença de R$ 274.996,46 entre as avaliações do bem, de modo que o preço exigido em leilão representaria apenas 39% do valor real do bem. (…)” (Relator(a): Artur Marques; Comarca: São Joaquim da Barra; Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 08/05/2017; Data de registro: 08/05/2017)

 

“SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. AÇÃO ORDINÁRIA. INADIMPLEMENTO DOS MUTUÁRIOS. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. (…) ARREMATAÇÃO A PREÇO VIL: IMPOSSIBILIDADE. (…)

(…) Esta Corte, amparada em precedente do Colendo Superior Tribunal de Justiça, possui orientação no sentido de que o Decreto-Lei nº 70/66 não traz qualquer previsão quanto à necessidade de que o leilão de imóvel seja precedido de avaliação prévia. Pela desnecessidade de realização de avaliação prévia do imóvel, contudo, não se chega à conclusão da possibilidade de alienação do bem a qualquer preço, cabendo à parte interessada demonstrar a ocorrência de preço vil.

O Colendo Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que caracteriza preço vil a arrematação de imóvel por valor inferior a 50% de sua avaliação. Avaliado o bem, por oficial de justiça, em R$ 300.000,00, caracteriza a arrematação a preço vil de imóvel pelo valor de R$ 48.846,00, sendo o reconhecimento de sua nulidade medida que se impõe. Sentença mantida.

(…)” (TRF 1° Região, AC 0002570-45.2010.4.01.3200 / AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.1252 de 24/09/2015)

“SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. AÇÃO ANULATÓRIA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE PRÉVIA AVALIAÇÃO E DE PREÇO VIL NA ARREMATAÇÃO DO IMÓVEL. (…)

Não há, efetivamente, exigência legal expressa quanto à necessidade de avaliação do imóvel para efeito do leilão extrajudicial. Não quer isto dizer que o imóvel possa ser alienado por qualquer preço, entretanto, cabe à parte interessada demonstrar a ocorrência de preço vil.  (…)” (TRF 1° Região, AR 0060188-71.2012.4.01.0000 / MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA, TERCEIRA SEÇÃO, e-DJF1 p.64 de 13/04/2015)

Um segundo aspecto, que é objeto de muita discussão, concerne ao valor do imóvel que deve ser utilizado como parâmetro para se aferir a vileza da arrematação.

Pelo art. 24, inciso VI da Lei 9.514/97, deve constar no contrato o valor do imóvel no momento da contratação e os “critérios para a respectiva revisão” no momento do leilão, ocorre que, em regra, os critérios adotados pelas partes (definidos compulsoriamente pelo credor fiduciário) são a mera correção monetária ou correção pelos mesmos encargos financeiros que incidem sobre a dívida, os quais obviamente são incapazes de refletir a efetiva oscilação do valor real e de mercado do imóvel.

Deste modo, arrematado o imóvel no leilão extrajudicial, se o fiduciante constatar que o valor da arrematação se deu por menos que 50% do valor atual do imóvel, poderá ajuizar ação anulatória pleiteando a anulação do leilão e, requerendo antecipadamente a produção de prova pericial, visando a comprovação em juízo, do valor do imóvel naquele momento, contemporâneo a realização do leilão.

[1] CAMBLER, Everaldo Augusto. Preço vil: impossibilidade de arguição na alienação fiduciária de bem imóvel. http://www.arrudaalvimadvogados.com.br/2016/wp-content/uploads/2016/11/arguicao-de-alienacao.pdf Acesso em: 22 de janeiro de 2.018.

[2] Art. 4° Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[3] Art. 891.  Não será aceito lance que ofereça preço vil.

Parágrafo único.  Considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação.

*Leandro Marmo é especialista em defesas no processo de execução, pós-graduado em Processo Civil pelo IDP-Brasília e sócio do João Domingos Advogados Associados