A injustiça tecnológica

*Felipe Mello de Almeida

A pandemia impactou significantemente a justiça criminal, desde as circunstâncias mais simples, até os atos mais complexos. A modernização dos sistemas utilizados pelo judiciário, desde muito, já vinha sendo aperfeiçoada, principalmente com a implementação dos processos eletrônicos e posteriormente, em diversos estados, com os inquéritos policiais digitais.

No entanto, em razão do distanciamento pessoal necessário, os fóruns fecharam em meados de março de 2020, com algumas previsões frustradas de reabertura e, ao que parece, com a reabertura definitiva agendada para o dia 03 de agosto de 2020, com diversas restrições e imposições de procedimentos de distanciamento obrigatórios, com uso de máscara de proteção. Neste período, para que a justiça pudesse funcionar, pelo menos nas questões mais urgentes, sobretudo analisando os processos dos acusados detidos, foi necessário um grande empenho para a implementação de ferramentas tecnológicas, possibilitando a realização de audiência e julgamentos virtuais.

A imposição da quarentena obrigou a adoção imediata de procedimentos eletrônicos sem qualquer possibilidade de testes ou adaptações. A radical alteração aconteceu com os servidores, representantes do ministério público, advogados e magistrados trabalhando em home office, com as mais diversas realidades. Neste novo contexto, os operadores do direito e os servidores, como todos, tentaram e, ainda tentam, se adaptar com a nova realidade: trabalhar em casa, juntamente com os filhos, cachorros, gatos e com os afazeres domésticos.

Com o “novo normal”, a pessoalidade da justiça, que já era muito mitigada, tornou-se quase inexistente. A possibilidade de os advogados despacharem com os julgadores, que havia sido dificultada significativamente com a digitalização dos processos, atualmente encontra ainda mais resistência. As audiências e os julgamentos virtuais, realizadas por videoconferência, no início vistas como uma opção, desde que as partes concordassem, tornam-se uma realidade quase obrigatória, imposta pelos provimentos dos tribunais, sem qualquer regulamentação legal.

Nesta nova realidade, as tarefas mais simples, como a juntada de uma petição de vista para possibilitar o acesso aos autos pode demorar dias, prazo muito grande, especialmente se o investigado/acusado estiver preso. Em tempos normais, uma ligação ou o comparecimento ao cartório resolveria, de imediato, o problema. Mas, com os fóruns fechados, esses telefonemas não são uma opção. O e-mail é a única possibilidade, que, na maioria das vezes, não tem uma reposta imediata, demorando dias, sem sequer ter a possibilidade de despachar com o juiz.

Triste observar que conquistas importantes podem ser perdidas, tendo em vista que a exceção pode virar a regra. Os processos eletrônicos estão ganhando ritmos preocupantes, sobretudo com o uso de tecnologias automatizadas, que excluem significativamente a imprescindível pessoalidade do magistrado e o afasta, cada vez mais, dos advogados.

A justiça, ainda mais na área criminal, por impor penas restritivas de liberdade, não pode ser automatizada. A pessoalidade do juiz não pode ser suavizada, devendo ser garantido o necessário contato do magistrado com as provas, com os depoimentos, com os interrogatórios e, sobretudo, com a defesa. As peculiaridades e especificidades de cada processo devem ser observadas e levadas em consideração no julgamento. Neste momento, com as audiências sendo realizadas a distância, corre-se um risco muito grande de inexistir segurança no ato, tendo em vista que as vítimas e as testemunhas falarão em suas casas, sem qualquer controle do local, não sendo possível ter controle das circunstâncias em que essas pessoas prestam seus depoimentos.

Importante ressaltar que, muitas vezes, estes procedimentos estão sendo utilizados em processos sem qualquer urgência, visto que a realização destes atos, após o término da pandemia, em nada atrapalharia o bom andamento do processo, tampouco a distribuição da justiça. Mesmo porque a motivação para adiar os atos seria idêntica àquela para se mitigar direitos e garantias. Não se tem dúvida que é preferível ter um processo legítimo, respeitando o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, ao invés de se ter um processo célere, eivado de irregularidades, que poderá ser anulado posteriormente.

De outra sorte, é de suma importância ressaltar que em alguns tribunais os advogados sequer têm possibilidade de fazer sustentação oral em tempo real, sendo substituída por um vídeo gravado, que será, ou não, assistido pelos Desembargadores ou Ministros. Os mais entusiastas das audiências virtuais já sustentam a possibilidade da realização de júri popular da forma virtual, inclusive existia uma proposta de resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, com previsão para a participação do acusado de homicídio doloso por videoconferência.

Neste momento, é imperioso combater as alterações procedimentais, sobretudo as que trazem retrocessos significativos à defesa e aos jurisdicionados. Diante desta crise sem precedentes, necessário avançar, evoluir e não concordar com os julgamentos eletrônicos a qualquer custo. Os números do judiciário devem ser analisados de maneira qualitativa e não de forma quantitativa como muitos sustentam.

A exceção pode se tornar a regra, como costumeiramente ocorre na justiça e, assim sendo, qualquer mitigação das garantias constitucionais trará um efeito nefasto à distribuição de justiça, que deve ser combatido. O processo é o único procedimento capaz de defender os acusados da máquina estatal, por isso o respeito ao devido processo legal, a ampla defesa e todas as garantias constitucionais devem sempre ser asseguradas.

Diante de tudo, vemos que a pandemia não gerou só um gigantesco problema na saúde ou uma imensurável crise financeira, trouxe também dificuldades homéricas para a distribuição da justiça.

*Felipe Mello de Almeida é advogado, especialista em Processo Penal, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu e em Direito Penal Econômico Internacional.