A criminalização do uso de algemas

Tenho a sensação que nosso país anda de cabeça para baixo. Quando menos se espera, surgem ideias e comportamentos que causam verdadeiro assombro. A meu ver, o cometimento de crimes e a consequente prisão de qualquer membro da sociedade deveriam significar para o indivíduo privado da liberdade motivo de grande desonra, mas não, no Brasil, o que causa perplexidade mesmo é o uso de algemas.

Como em outros países , a regra deveria ser o emprego de algemas, mas, no Brasil, como temos o costume de “mascarar” a realidade, que é a prisão do indivíduo, e não estamos acostumados com a punição, a regra é a proibição. O seu emprego só é lícito em “casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Esse é o teor da Súmula Vinculante 11, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de agosto de 2008.

No Júri Popular, de igual forma, em que são julgados, em princípio, homicídios, parece até irônico que, para evitar que o preso seja visto por seus pares como uma pessoa violenta ou perigosa, não se pode manter o uso de algemas. O juiz tem que mandar retirar imediatamente.

No Habeas Corpus nº 91.952-9, de 07 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal, para assegurar a dignidade humana do réu, anulou o julgamento de um homicídio triplamente qualificado ocorrido no interior de São Paulo, porque o preso permaneceu algemado durante a sessão. A juíza fundamentou a manutenção das algemas no número insuficiente de policiais, porque havia apenas dois policiais civis na sessão, mas os ministros entenderam que esse não era motivo suficiente para o algemamento.

Para se ter uma ideia dos riscos que os agentes de segurança pública correm, conforme noticiado pela mídia “um pecuarista de Itaquiraí (MS), acusado de matar duas pessoas por causa de uma dívida de R$ 50, quando era conduzido de Itaquiraí para Naviraí, transportado sem algemas na parte traseira da Blazer da Polícia Civil, porque pessoa conhecida da região, sem antecedentes outros que não o investigado, agarrou o volante e jogou a viatura contra uma carreta. O acidente matou o policial Antônio Aparecido Pessin, 47 anos, e feriu mais quatro pessoas” .  São inúmeros os casos de policiais que morreram em situação semelhante.

A proibição, ademais, parte da premissa de que o uso de algemas é humilhante, ofende a dignidade da pessoa humana, e submete o preso a situação degradante, mas, na verdade, as algemas são instrumentos utilizados para evitar que o preso, por desespero ou qualquer outra atitude impensada, cause danos à vida ou à integridade física própria e de terceiros, como dos policiais responsáveis por sua prisão, que cometa suicídio ou outros atos irracionais, diante da aflitiva situação que envolve o ato da prisão.

Não deveria o Estado-Administração exigir que os agentes da força de segurança se comportassem como heróis, e visando a proteção da imagem e dignidade do preso, expor a vida e a integridade física não só dos incumbidos de executar a prisão, mas de todos aqueles que integram o atual sistema de justiça criminal e eventuais terceiros que possam ser atingidos.

No meu sentir, aliás, não há razoabilidade nenhuma nessa preocupação de evitar que o preso (maior ou menor de idade) seja algemado, principalmente em um país líder mundial de homicídios, que possui a quinta maior taxa de feminicídios do mundo, que registra 527 mil estupros por ano, que sofre com altos índices de criminalidade e enfrenta um quadro endêmico de corrupção. Nossas preocupações deveriam ser outras, como por exemplo com a efetividade das leis e o combate à corrupção.

Ao contrário, vejo que, com a finalidade de incutir na população a ideia de que o uso de algemas é historicamente repudiado, os defensores da proibição utilizam citações da época do Brasil Império, as quais tratam do horror do acorrentamento de presos com “ferros” em masmorras, situação que não guarda nenhuma correlação com o cenário de violência vivenciado atualmente no Brasil.

Citam o Decreto de 23 de maio de 1821 do Príncipe Regente Dom Pedro, que dizia: “(…) que em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, em masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros, inventados para martirizar homens, ainda não julgados, a sofrer qualquer pena aflitiva, por sentença final, entendendo-se, todavia, que os Juízes e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinquentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados ou sofrendo qualquer especie de tormento. (EmHC 91.952 / SP “Coleção das Leis do Brasil de 1821”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,1889, Parte II, p. 88 e 89). (Grifei)

Todavia, o Código de Processo Criminal do Império – de 29 de novembro de 1832, no capítulo “Da Ordem de Prisão”, artigo 180, previa apenas que “se o réu não obedecer e procurar evadir-se, o executor tem direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão, se obedecer porém, o uso da força é proibido”. Referida norma foi mantida pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que reformulou o Código de Processo Criminal.

Na sequência, ao reestruturar o referido diploma legal, a lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro do mesmo ano, no artigo 28 preceituou que o preso não seria “conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando o não justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de dez a cinquenta mil réis, pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso”.

Já o atual Código de Processo Penal de 03 de outubro de 1941, em seu artigo 284, previu que: “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”, não se referindo, como se vê, ao uso de algemas.

Somente com a Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, que deu nova redação ao artigo 474 do Código de Processo Penal, foi introduzida no referido codex essa proibição, mas somente para os julgamentos realizados pelo júri. Note: “Artigo 474. (…) § 3º Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.

A Lei de Execuções Penais (Lei Federal nº7210/84), por seu turno, determinou que a questão fosse resolvida por meio de decreto, que somente foi editado em 26/09/2016, estabelecendo o Decreto Presidencial nº 8.858 o seguinte: “Art. 2º É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito”.

Ainda sobre o tema, o artigo 234, § 1º, do Código de Processo Penal Militar, trouxe a seguinte previsão: “O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242”. Esse artigo se refere a autoridades.

De outro vértice, noto que o artigo 33 das Normas e Princípios das Nações Unidas sobre a Prevenção ao Crime e Justiça Criminal  prevê somente que no tratamento de prisioneiros o emprego de algemas jamais poderá se dar como medida de sanção. É a única exceção.

No entanto, com a preocupação de assegurar a integridade física e moral do preso, há dispositivo no projeto do novo Código de Processo Penal prevendo a excepcionalidade das algemas (artigo 537), e está na iminência de ser votado no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 280/2016, que trata do abuso de autoridade. Com ele, a proibição do uso de algemas passará a ser lei, com previsão de pena de detenção, de 06 meses a 02 anos de prisão, e multa, para o agente público que submeter o preso ao uso de algemas.

Tanto quanto a criminalização da conduta, chama a atenção a utilização da palavra “manifestamente” no texto do artigo , cujo significado pode variar ao sabor da avaliação do intérprete, e ensejar injusta punição e perseguição ao agente, como também a previsão de agravamento da pena se o uso de algemas se der em adolescente (menor de 18 anos), em mulher “visivelmente grávida” ou ocorrer em penitenciária. Aqui também houve a utilização de expressão que exige interpretação subjetiva, isto é, mulher “visivelmente grávida”, vez que se trata de situação que nem sempre é fácil constatar.

Afora a impropriedade técnica do dispositivo, vê-se que o momento em que está sendo discutido inspira prudência, pois deixa transparecer que a pretensão dos parlamentares não é propriamente inibir o abuso de autoridade, mas livrar das algemas os envolvidos no maior esquema de corrupção do planeta, que vem sendo destrinchado a passos largos pela Operação Lava Jato.

O abuso, sem dúvida, deve ser coibido e, exemplarmente, punido, mas, no que diz respeito ao algemamento, entendo que os agentes policiais possuem aptidão técnica suficiente para, no momento da prisão, avaliar a necessidade de uso de algemas, até porque são os primeiros a sofrer as consequências de eventual desordem provocada pelo detido, o mesmo acontecendo com os magistrados durante as audiências.

Criminalizar a má avaliação das circunstâncias da prisão e, via de consequência, o uso de algemas, não se afigura nenhum avanço civilizatório, ao contrário, representa uma incompreensível inversão de valores, que somente contribuirá para o estado de insegurança em que vivemos, sem nenhuma vantagem ou proveito para honra e dignidade dos presos.

*Placidina Pires é juíza da 10ª Vara Criminal de Goiânia.