Trabalho escravo: uma realidade a ser combatida

O texto desta quarta-feira (26) foi escrito pela colega Priscila Salamoni de Freitas, sócia do GMPR advogados e coordenadora da equipe trabalhista. Ela trata sobre trabalho escravo.

Priscila Salamoni de Freitas

Leia a íntegra do texto:

Recentemente, podemos observar um incremento na divulgação de notícias que versam sobre o “trabalho escravo” e, em especial, uma tentativa de vinculá-las ao agronegócio. Somente nos últimos 4 meses deste ano, operações identificaram potencialmente 900 trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão. Além de ser um número alarmante, o que também nos preocupa é a tentativa de vincular o setor do agronegócio à essas práticas abusivas de trabalho.

A fim de que empresas e produtores rurais entendam melhor o que configura um trabalho em condições análogas à escravidão, elaboramos o presente artigo para tentar desmistificar os conceitos e permitir que a informação seja veículo de combate a estas práticas abusivas no campo.

Quanto ao conceito de “trabalho análogo à escravidão”, a legislação brasileira prevê no artigo 149 do código penal os elementos que o caracteriza: a submissão de trabalhador (i) a serviço forçado ou (ii) a jornada exaustiva ou que atue em (iii) locais de trabalho degradantes, como ambientes insalubres ou sem as condições mínimas de saúde e segurança, ou até mesmo (iv) restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador (servidão por dívida).

Sobre esses elementos caracterizadores, vale trazer alguns esclarecimentos.

O serviço forçado (i) fica configurado quando o trabalhador é obrigado a prestar o serviço, muitas vezes sem um vínculo celetista e sem receber seus direitos básicos, geralmente em locais de difícil acesso (com isolamento geográfico), sob ameaças e violências físicas e psicológicas.

Já a jornada exaustiva (ii) fica configurada com a submissão do trabalhador a esforço excessivo e a sobrecarga de trabalho, com labor acima das 10 horas diárias permitidas por lei, o que ocasiona danos à saúde ou ameaça à vida do trabalhador.

Quanto aos locais de trabalho degradantes, como ambientes insalubres ou sem as condições mínimas de saúde e segurança (iii), estes ficam configurados se as condições do espaço laboral ferem a dignidade humana, violam os direitos fundamentais e colocam em risco a saúde e a vida do trabalhador. São exemplos de locais degradantes e insalubres os alojamentos em condições precárias, sem água potável, banheiros inadequados e sem chuveiro, paredes sujas e mofadas, goteiras no telhado, casas sem ventilação adequada (cômodos sem janelas), quartos sem camas ou colchões, cozinhas sem local adequado para guardar e preparar alimentos. Além disso, também pode configurar “ambientes sem as condições mínimas de saúde e segurança” a ausência de fornecimento de equipamentos adequados de proteção individual aos empregados.

Por fim, quanto à servidão por dívida (iv), esta fica configurada com a retenção de trabalhadores no local de trabalho em razão de dívidas contraídas ilegalmente, geralmente decorrente da comercialização de equipamentos para o próprio desempenho das atividades ou de colchões para dormir ou outros utensílios de casa.

Para que seja caracterizado o trabalho análogo ao escravo os elementos podem ser identificados em conjunto ou isoladamente, isto é, basta que um desses elementos fique caracterizado para que o trabalho “análogo ao escravo” fique configurado. 

É importante ressaltar que o trabalho análogo à escravidão é considerado um crime grave e pode levar a diversas penalidades: multas aplicadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego; indenizações aos trabalhadores; pena de reclusão de 2 a 8 anos; cassação de registro da empresa; bloqueio de bens; e, inclusão da empresa na “Lista suja do trabalho escravo”, a qual pode gerar a impossibilidade da empresa receber incentivos fiscais e de crédito, além de prejudicar a reputação e capacidade para fazer negócios da empresa ou empregador.

Sobre o cenário recente de investigações de trabalho escravo, é curioso notar que praticamente todas as vítimas foram localizadas em ambientes rurais, o que decorre do fato de que, nesses ambientes, o isolamento geográfico favorece a prática (o que não significa que não haja trabalho escravo nos ambientes urbanos).

Dessa forma, a recorrência das investigações exitosas nos ambientes rurais tem intensificado a ação do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE em fazendas, motivo pelo qual os empregadores rurais precisarão ter atenção redobrada sobre a observância da legislação trabalhista e dos preceitos da norma regulamentadora (NR) 31.

Essa NR prevê obrigações mínimas sobre segurança e saúde no trabalho no ambiente rural, extremamente detalhadas e minuciosas – obrigações que, se não forem cumpridas, podem causar a aplicação de multas e indenizações que podem chegar ao patamar de milhões de reais, sem contar no custo reputacional já mencionado.

Nesse sentido, a todo empregador (principalmente os do meio rural) é necessário rever se o cumprimento de todas as regras é, de fato, rotineiro, se as políticas internas estão em conformidade com a NR, se há a necessidade de reavaliar práticas antigas ou iniciar novas práticas – enfim, periodicamente, é importante que empregadores do meio rural realizem auditorias trabalhistas a fim de monitorar o grau de conformidade, identificar possíveis irregularidades e garantir o cumprimento da lei e das normas trabalhistas vigentes.