O julgamento do Tema nº 1.046 e o (r)empoderamento dos Instrumentos Coletivos

Quem escreve na coluna desta quinta-feira (04) é o Desembargador Federal do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região Elvecio Moura dos Santos e a advogada Millena Beatriz Romão Moura. O tema escolhido foi O Julgamento do Tema nº 1.046 e o (R)Empoderamento dos Instrumentos Coletivos.

O desembargador Elvecio é especialista em Direito e Processo do Trabalho, mestre e doutorando em Direito do Trabalho e professor universitário licenciado da PUC Goiás e da Uni Goiás. O tema escolhido foi o julgamento do Tema nº 1.046 e o (r)empoderamento dos instrumentos coletivos.

Já Millena Beatriz é graduada em Direito pela PUC Goiás, pós-graduada em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito Atame; especialista em Recursos Trabalhista Atuou como consultora jurídica de sindicatos em Goiânia e Rio Verde; advogou no Núcleo de Prática Jurídica da PUC–GO; ocupou o cargo de Conselheira Fiscal do Instituto Goiano do Direito do Trabalho – IGT; Atua como mediadora e conciliadora em demandas trabalhistas; chefe do Departamento Juridico do Seacons – Sindicato dos Empregados nas Empresas de Asseio, Conservação, Limpeza Publica e Ambiental, Coleta de Lixos e Similares do Estado de Goiás desde 2013; advogada da Ceasa GO – Centrais deAbastecimento do Estado de Goiás desde 2020, diretora da Acieg – Associação Comercial, Industrial e Serviços de Goiás desde maio/2022.

Elvecio Moura dos Santos e Millena Beatriz Romão Moura

Leia a íntegra do texto:

Antes de discorrer sobre a importância do recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, relativo ao Tema nº 1.046, que culminou na tese de repercussão geral abordada neste artigo, é necessário fazer uma pequena contextualização acerca da matéria.

O Tema nº 1.046 versa sobre a constitucionalidade de Instrumentos Coletivos, que tragam em seu bojo cláusulas que limitam ou afastam direitos trabalhista.

Em um primeiro momento, reconhecer a validade dessas normas coletivas pode parecer um retrocesso no que diz respeito às conquistas históricas dos trabalhadores, que têm vasta gama de direitos constitucionalmente assegurados (art. 7º, CF) e gozam de especial proteção jurídica emanada do contexto legislativo, com vistas a amparar a parte hipossuficiente da relação empregatícia.

Todavia, este não é o caso.

A Constituição Federal de 1988 conferiu às entidades sindicais, uma série de prerrogativas, entre elas, a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria por eles representadas assegurando a livre associação profissional ou sindical, classificando-os como direitos fundamentais.

A Carta Magna dispõe ainda, que a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho é obrigatória (art. 8º, VI da CF/88), exatamente porque cabe a essas entidades sindicais atuar (cada uma em sua esfera), na defesa dos interesses da categoria que representa.

O resultado prático dessa “discussão” levada a efeito entre os sindicatos por meio da negociação entre as categorias econômica e profissional, são os acordos e as convenções coletivas de trabalho. Como se sabe, a diferença básica entre os instrumentos decorrentes da negociação está nos signatários e na abrangência. Enquanto os acordos coletivos são firmados entre o sindicato e uma empresa (aplicando-se tão somente a ela) disciplinando as relações de trabalho dessa empresa, as convenções coletivas de trabalho são firmadas entre os sindicatos laboral e patronal, visando disciplinar as relações de trabalho de todos os trabalhadores de uma determinada
categoria.

Historicamente, os Acordos e as Convenções Coletivas de tTabalho gozam de proteção constitucional, sendo expressamente previsto na Lei Maior do nosso país, o reconhecimento dos Instrumentos Coletivos como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, conforme se pode ver pelo art. 7º, XXVI, CF, verbis:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho;”

O intuito do legislador constituinte foi conferir às partes legitimadas a celebrar uma norma coletiva, os meios necessários a fazer efetivamente prevalecer a autonomia privada coletiva. Vale dizer, a vontade das partes coniventes. Nessas condições, sob a ótica constitucional, pode-se afirmar que os direitos e obrigações convencionados têm força de lei entre os pactuantes, desde que observados os limites legais mínimos estabelecidos pelas fontes formais de direitos.

Para além das normas pátrias, podemos citar, apenas a título de exemplificação as Convenções nº 98 e 135 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que versam sobre a liberdade sindical e a negociação coletiva nos setores privado e público, e conferem aos Instrumentos Coletivos uma proteção especial face ao Estado.

Tudo não obstante, já há algum tempo os Instrumentos Coletivos vinham sendo enfraquecidos, quer pela atuação precária dos sindicados, quer em virtude de decisões judiciais que terminam por subtrair a força normativa dos instrumentos negociais e comprometer, de forma direta, a “autonomia da vontade coletiva”.

Com o advento da Lei nº 13.467/2017, a chamada “Lei da Reforma Trabalhista”, o contexto protetivo da legislação laboral pátria foi substancialmente alterado, dando azo ao surgimento de uma nova realidade nas relações de trabalho, onde a flexibilização trabalhista passou a acontecer com mais evidência.

A “Nova” Consolidação das Leis do Trabalho – NCLT, consagrou, em seu Art. 611-A, a prevalência do negociado sobre o legislado. Entretanto, esse permissivo negocial prevalece apenas em relação às matérias elencadas nos incisos do referido dispositivo consolidado. Ademais, as disposições constantes nos instrumentos coletivos não tem eficácia sobre direitos trabalhistas fundamentais assegurados na CF ou no ordenamento jurídico-trabalhista, de que são exemplos: o valor nominal do 13º salário, a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, valor dos depósitos mensais e da indenização rescisória do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal, entre outros.

Por outro lado, é fora de dúvida que a atual ordem jurídica recepciona a supralegalidade das convenções e dos acordos coletivos, empoderando os Instrumentos Normativos, ao prever, de forma expressa, que respeitados os limites legais, as Convenções e Acordos Coletivos irão sobrepor-se ao legislado, sendo soberana a vontade coletiva dos coniventes.

Ocorre que, como toda inovação, as alterações trazidas pela Reforma Trabalhista suscitaram amplos debates acerca desse empoderamento dos Instrumentos Coletivos, sendo que a aplicabilidade da Lei em questão às situações vivenciadas na dinâmica diária, não raro, mostra-se controversa.

Desde 2017, quando veio a lume a Lei da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), inúmeros Acordos e Convenções Coletivas foram celebrados e com isso, os sindicatos laborais e patronais começaram a aplicar aos casos concretos, os novos permissivos legais.

Com isso, surgiram normas coletivas que discorreram sobre matérias que não estavam expressamente vedadas pelo art. 611-B, mas que mesmo assim, incorriam em limitação, redução ou supressão de direitos trabalhistas.

Logicamente, os casos mais emblemáticos foram parar nos Tribunais pátrios, tendo ocorrido uma verdadeira avalanche de ações judiciais que versavam acerca da validade, legalidade e constitucionalidade de normas coletivas que tinham como escopo, a redução de direitos trabalhistas.

A discussão chegou aos Tribunais Superiores, inclusive aportou no Supremo Tribunal Federal (STF), onde recebeu a identificação de “Tema nº 1.046”.

Pois bem, em 02/06/2022, o “Tema nº 1.046”, entrou em pauta de julgamento no bojo do ARE 1121633, um Recurso Extraordinário com Agravo em que se discutiu, à luz dos art. 5º, incisos II, LV e XXXV, e art. 7º, incisos XIII e XXVI, da Constituição Federal de 1988, a validade de norma coletiva de trabalho que restringe direito trabalhista, desde que não seja absolutamente indisponível, independentemente da explicitação de vantagens compensatórias.

O Supremo Tribunal Federal, por maioria, apreciando o Tema 1.046, deu provimento ao Recurso Extraordinário, nos termos do voto do Relator, Min. Gilmar Mendes, vencidos os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber firmando a seguinte tese de repercussão geral:

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

A recente decisão do STF em comento, ratifica o caráter supralegal dos Instrumentos Coletivos, considerando constitucionais os Acordos e as Convenções Coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamento de direitos trabalhistas, ressalvados os direitos absolutamente indisponíveis.

O que, em um primeiro momento pode causar estranheza, justifica-se na medida em que a celebração de uma norma coletiva envolve ponderações complexas sobre uma série de interesses variados e antagônicos, de modo que as cláusulas que compõem essas normas são fruto de intensa negociação coletiva, onde há concessões recíprocas de parte a parte, de modo que não podem ser vistas de forma isolada.

De fato, as concessões feitas por uma das partes quanto a determinado aspecto, mesmo quando possam parecer excessivas, são contrabalançadas por concessões feitas pela outra parte, quanto a outros aspectos, mesmo que não vinculadas umas às outras.

Com a fixação da tese de repercussão geral, o Excelso STF por seus Ministros reconheceu que cada categoria, em cada Estado ou Município, tem suas necessidades específicas e realidades próprias, e que esse fator deve ser levado em consideração quando da negociação com vistas à celebração de um novo Instrumento Coletivo.

A tese em comento, trouxe consigo a confirmação da prevalência do negociado sobre o legislado e, mais uma vez, veio prestigiar a “autonomia da vontade das partes” ou “autonomia privada coletiva”.

A decisão em questão mostra-se de suma importância no âmbito sindical e do Direito Coletivo do Trabalho, prestigiando as entidades sindicais legitimadas para que possam legítima e autonomamente defender os interesses de seus representados, respaldando a soberania daquilo que foi decidido em conjunto por toda uma categoria.