Primeira mulher a presidir o STJ, goiana Laurita Vaz deixa a corte após 22 anos

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Nos primeiros versos da obra Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, Cora Coralina apresenta uma mulher que usa a poesia para se reinventar, capaz de escalar a própria vida como se fosse uma montanha, removendo pedras e plantando flores em seu caminho.

Essa personagem que enfrenta os desafios com aguçada sensibilidade é frequentemente associada à escritora, mas, para muitos que conhecem de perto a ministra Laurita Vaz, também serviria para descrevê-la no curso de seus 45 anos de atividade jurídica – trajetória que se encerra na próxima quinta-feira (19), quando ela se aposenta após 22 anos de exercício do cargo no Superior Tribunal de Justiça (STJ).​​​​​​​​​

Laurita Vaz foi a primeira mulher a presidir o Tribunal da Cidadania e o Conselho da Justiça Federal (CJF), no biênio 2016-2018. Foi também a primeira mulher com origem no Ministério Público Federal (MPF) a integrar a corte.

Carreira no MP e tribunais

Goiana como Cora Coralina, Laurita Hilário Vaz nasceu no município de Anicuns e se formou em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em 1976. Logo em seguida, especializou-se em direito penal e direito agrário pela Universidade Federal de Goiás.

Em 1978, iniciou uma longa carreira no Ministério Público, primeiramente como promotora em Goiás, e, a partir de 1984, como procuradora da República, oficiando perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

De 1986 até 1998, integrou o Conselho Penitenciário do Distrito Federal como representante do Ministério Público Federal, presidindo-o nos dois últimos anos. Paralelamente, trabalhou como professora de universidades de Brasília nas áreas de direito penal e processual penal.

Ainda na década de 1990, atuou no STJ como subprocuradora-geral da República, até ser nomeada ministra pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em junho de 2001, na cadeira que antes pertencia ao ministro William Patterson.

Somados os períodos como representante do MPF na corte e como ministra, foram mais de três décadas de atividades no tribunal.

Trabalho intenso

Marcos Brayner, coordenador da assessoria do gabinete da ministra, acompanhou essa trajetória desde 2000, quando Laurita Vaz ainda oficiava no STJ como subprocuradora-geral da República, e foi o secretário-geral da Presidência no período em que ela assumiu o comando da corte. A experiência adquirida no órgão ministerial foi determinante para que a ministra desenvolvesse sua maneira de julgar, avalia o assessor-chefe.

No dia a dia do tribunal, segundo Brayner, a ministra sempre se preocupou com o impacto de seu trabalho na vida das pessoas e da sociedade em geral; por isso mesmo, buscava entregar decisões justas e equilibradas, com um olhar cuidadoso para os hipossuficientes.

“A sensibilidade que demonstra em seus julgamentos e votos não se opõe à necessidade de ser firme nas investigações, condenações e prisões por crimes reputados graves. Dispensa sempre um cuidado especial com causas que envolvem vulneráveis, como crianças, idosos e mulheres. É firme, sem perder o espírito fraternal”, definiu.

Dedicação profissional

Durante seu período no STJ, Laurita Vaz exerceu diversas funções de destaque. Antes de se tornar presidente da corte, em 2016, presidiu a Terceira Seção e a Quinta Turma, órgãos especializados em direito penal. Também ocupou cargos no CJF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde foi corregedora-geral eleitoral de 2013 a 2014. Atualmente, integra a Corte Especial, a Terceira Seção e a Sexta Turma – colegiado do qual é presidente.

Nesses 22 anos, a ministra se colocou entre os membros do tribunal com maior número de julgados. Até julho último, ela havia proferido 377.433 decisões – o que representa uma média de 17.156 por ano, incluindo os períodos em que foi presidente e vice-presidente. No total, foram 56.639 acórdãos de sua relatoria e 320.794 decisões monocráticas. Entre os acórdãos, 14 resultaram de julgamentos relatados pela ministra no rito dos recursos repetitivos.

Redução do acervo processual

O número crescente de processos que chegam à corte sempre foi uma preocupação da magistrada. O período em que ela atuou na presidência, entre 2016 e 2018, foi marcado pela expressiva redução de 25% no estoque processual – um feito inédito. Ao tomar posse no cargo, Laurita Vaz deixou claro que os esforços de sua gestão se concentrariam na atividade-fim do tribunal, visando julgamentos mais rápidos e com qualidade.

“O STJ não pode mais se prestar a julgar casos e mais casos, indiscriminadamente, como se fora uma terceira instância revisora. Não é. Ou, pelo menos, não deveria ser, porque não é essa a missão constitucional do tribunal”, afirmou a ministra na ocasião, ao anunciar sua disposição de intensificar as gestões junto ao Congresso Nacional em defesa da aprovação da emenda constitucional que viria a criar o chamado filtro de relevância do recurso especial.

A redução dos processos se deu por meio de uma série de iniciativas, como a criação de uma força-tarefa para auxiliar os gabinetes dos ministros, o investimento em gestão de precedentes e medidas para ampliação e reestruturação do Núcleo de Admissibilidade e Recursos Repetitivos (Narer), depois transformado na Assessoria de Admissibilidade, Recursos Repetitivos e Relevância (ARP). Além disso, foram implementadas inovações como o Plenário Virtual, a Central do Processo Eletrônico e o uso, pela primeira vez, da inteligência artificial para mapear e classificar processos.

Outro avanço tecnológico relevante do período foi a criação do Chancela, aplicativo para dispositivos móveis que permite a assinatura eletrônica de documentos, com o objetivo de facilitar a atuação dos relatores nos processos a partir de qualquer lugar onde estiverem.

Em seus votos como julgadora, Laurita Vaz deu importante contribuição para a formação da jurisprudência do STJ em matéria penal. Paralelamente ao rigor técnico de suas decisões, a sensibilidade diante dos grupos sociais vulneráveis se manifestou em diversos momentos, como na definição de parâmetros para aplicação da Lei Maria da Penha e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). (STJ)