Garantismo “à la carte” e o indulto ao deputado Daniel Silveira

O indulto concedido pelo presidente da República ao deputado Daniel Silveira poderia ser visto como ponto fora da curva na série histórica de indultos que foram decretados em seu mandato [1], notoriamente restritivos à imensa maioria da população prisional brasileira, não fosse o fato de veicularem circunstancial preocupação com restrita parcela de pessoas, em sua maioria integrantes das Forças de Segurança Pública e das Forças Armadas, o que é indicativo de um “garantismo à la carte” [2], prática que deturpa a ideia de contenção do poder punitivo.

Não menos “à la carte” tem sido a postura de certos setores progressistas que, ao invés de defender o instituto do indulto, autêntico instrumento de contenção do poder punitivo estatal e de proteção de diretos fundamentas, têm, ao menos quando o agraciado em questão é considerado adversário capital, adotado postura utilitária de causar inveja até mesmo aos mais ferrenhos defensores do direito penal do inimigo [3].

Condenado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Penal n. 1.044 à pena de 8 anos e 9 meses de reclusão, por incursão nos crimes de coação no curso de processo [4] e de impedimento de exercício de Poderes [5], Daniel Silveira foi agraciado por indulto do Presidente da República, publicado no DOU de 21/04. Nos termos do decreto presidencial, a graça é incondicionada, independe do término dos recursos no processo (ou o chamado trânsito em julgado) e alcançaria a pena privativa de liberdade, a pena de multa e as penas restritivas de direitos.

Questionada a constitucionalidade do indulto em Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental propostas pelos partidos PDT, Rede Sustentabilidade, Cidadania e PSOL* (ADPF 964, 965, 966 e 967), as ações foram distribuídas, por sorteio, à relatoria da Ministra Rosa Weber, a quem caberá analisar a matéria. Nos termos da ação proposta pelo PDT, o ato presidencial “violou o princípio da separação dos poderes, do devido processo legal e da moralidade administrativa na vertente desvio de finalidade e impessoalidade”. Segundo a petição apresentada pela Rede Sustentabilidade o ato presidencial “teria sido produzido antes do necessário trânsito em julgado, violando os preceitos fundamentais da impessoalidade e da moralidade, além de verberar desvio de finalidade”, bem como “o crime em questão seria insuscetível de indulto pelo fato de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito”. Para o Partido Cidadania, entre outros argumentos, “a fundamentação do decreto presidencial ventilou inconstitucionalidade na medida em que o Chefe do Executivo se convertera em instância recursal do STF, quem tem a palavra final sobre a Constituição”.

Para além do diversionismo político que representa o Decreto de 21 de abril de 2022, o indulto individual concedido pelo Presidente da República ao Deputado Federal Daniel Silveira levará o STF a revisitar a sua jurisprudência sobre o indulto e a comutação de penas, o que não significa dizer que, após o julgamento, resultará modificada.

No que alude à legitimidade do Presidente da República à concessão de indulto individual, o STF tem afirmado “inserir-se no exercício do poder discricionário do Presidente da República, limitado à vedação prevista no inciso XLIII do art. 5º da Carta da República” [6]. Recentemente, ao analisar o Decreto n. 9.246, de 21 de dezembro de 2017, o STF tornou a referir que “compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade”. [7].

O julgamento da ADI 5874-DF também tornou incontroversos outros dois aspectos: a natureza do indulto como expressão da separação de poderes e os limites ao controle judicial. Reforçou o STF, em resumo, que o legislador constitucional originário “visando, principalmente, a evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais. [8]

Sobre os limites ao controle judicial do decreto de indulto, decidiu o STF, naquela feita, sobre a “possibilidade de o Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal. [9] Nesse último caso, exceção haveria exceção se a hipótese eleita fosse ilegal ou imoral, devendo, em quaisquer das situações, existir prova suficiente. Por exemplo, a suscitada hipótese de ferimento à impessoalidade, conduta moralmente inadmissível, caso existente, deverá ser demonstrada nos autos das ações que questionarão o indulto.

Assim, segundo o STF, o decreto de indulto seria inconstitucional se o delito indultado estivesse entre aqueles previstos no texto da Constituição, como o são, por exemplo, os delitos de retenção dolosa de salário [10] ou o delito de ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático [11]. Nesse último caso, embora a previsão constitucional exclua o autor da possibilidade de prestar fiança ou de ver a pretensão punitiva estatal prescrita, o só status constitucional do mandado de incriminação e o bem jurídico tutelado (ordem do estado democrático de direito) impediriam a concessão do indulto.

Outro aspecto de inconstitucionalidade à concessão de indulto encontra fundamento material no art. 5º, XLIII, que considera, expressamente, insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, previsão última que foi regulamentada na Lei n. 8.072/90: não é o caso da situação aqui discutida. Sobre esse tema já decidiu o STF que “na Constituição, a graça individual e o indulto coletivo – que ambos, tanto podem ser totais ou parciais, substantivando, nessa última hipótese, a comutação de pena – são modalidades do poder de graça do Presidente da República (art. 84, XII) – que, no entanto, sofre a restrição do art. 5º, XLIII, para excluir a possibilidade de sua concessão, quando se trata de condenação por crime hediondo.” [12]

Sobre os motivos à concessão do indulto, embora se infira do Decreto de 21 de abril de 2022 a existência “considerandos”, conforme decidiu o STF na ADI 5874-DF, descabe ao judiciário adentrar no mérito da clemência, pena de violação à separação dos poderes. E não poderia ser diferente, a considerar que se fosse possível ao STF adentrar no mérito do decreto de indulto, autorizado estaria a incluir como indultáveis hipóteses não previstas pelo Chefe do Executivo. Apenas para lembrar, a competência para conceder indulto figura entre as atribuições de natureza política do Presidente da República, previsão expressa do art. 84, XII da CF/88, tratando-se de ato de governo que retira sua discricionariedade da própria Constituição.

Sobre a forma e os motivos do ato de indulto do Deputado Daniel Silveira, poderia o Presidente se limitar, apenas, a indicar o fundamento constitucional de seu ato (art. 84, XII da CF/88), a qualificar o agraciado e indicar os crimes cujas penas seriam extintas, sendo desnecessária qualquer menção às razões de sua decisão ou à manifestação de seu inconformismo com a condenação sobre a qual sua irresignação foi dirigida: o indulto é, em si, um ato de inconformismo contra decisão judicial e que possui fundamento no texto constitucional, não podendo ser considerado, necessariamente, um recurso como o conhecemos. Também a necessidade de procedimento ou de provocação prévia é espancada, possuindo o Presidente da República, na forma do art. 734 do CPP, a faculdade de concedê-lo espontaneamente.

Por fim, não há qualquer impedimento de a concessão de indulto ocorrer antes do trânsito em julgado da condenação, bastando, no entanto, que o Juiz (da causa, de ofício, ou da execução penal), declarem a extinção da pena do condenado. Ainda sobre a necessidade de trânsito em julgado para a concessão de indulto, note-se que deve prevalecer a ideia segundo a qual o trânsito em julgado é desnecessário à concessão do indulto. Por exemplo, imagine o caso em que um acusado, após ter sido condenado (art. 734 do CPP), teve negado seu direito de recorrer em liberdade, e viu-se, após recurso exclusivo da defesa, vinculado à execução penal por força de guia de cumprimento provisório. Nesse caso, sobrevindo decreto de indulto, individual ou coletivo, na pendência do julgamento do recurso defensivo, e desde que satisfeitos os requisitos previstos no decreto concessivo, terá o condenado direito à extinção da pena sem que, necessariamente, ocorra o trânsito em julgado.

Nota-se que a questão levada ao STF, embora polêmica, e maculadora de interesses que, no conjunto da obra, denotam aspirações antidemocráticas – o que é absurdamente grave, vide a adequação formal que marcou a produção jurídica no Estado Nazista – deva ser resolvida de maneira a evitar o esvaziamento definitivo do indulto como medida necessária e importante ao combate do Estado de Coisas Inconstitucional tratado pelo próprio STF na ADPF 347. Logo, a jurisprudência do STF parece sugerir que o indulto ao Deputado Daniel Silveira deverá prevalecer, a menos que o cenário mude ou que surjam novos elementos. Nesse sentido, devem ser observados os próximos acontecimentos. Primeiro, a resposta do Presidente da República à determinação da Ministra Rosa Weber para que, no prazo de 10 dias, preste esclarecimentos sobre o decreto. Segundo – e mais importante, avalio – o conteúdo da decisão da Relatora sobre os pedidos de suspensão do decreto de indulto, presentes nas ações propostas, até o julgamento do mérito, ou o silêncio sobre tais pedidos.

A considerar tudo o que envolve a questão aqui discutida, e tendo-se em conta que o pleito eleitoral se aproxima, é possível que a solução mais sábia seja aquela dada pelo tempo.

[1] Vide Decreto n. 10.189, de 2019; Decreto n. 10.590, de 2020; e Decreto n. 10.913, 2021, que prestigiam, majoritariamente, agentes públicos que compõem o sistema nacional de segurança pública e militares das Forças Armadas, em operações de Garantia da Lei e da Ordem, conforme o disposto no art. 142 da Constituição e na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, que, até 25 de dezembro de 2020, tenham sido condenados por crime na hipótese de excesso culposo prevista no art. 45 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar.

[2] Sobre o assunto ver: KHALED JR, Salah H. Garantismo à la carte: integral, desnatado ou semi-desnatado? Disponível em https://cecgp.com.br/postagem-1701/.

[3] Não é demais recordar que a persecução penal contra a qual a graça foi dirigida é marcada por violação ao princípio contraditório (o inquérito foi instaurado sem provocação dos atores legitimados), por aparente suspeição do julgador (o Ministro Relator é uma das autoridades contra a qual ameaças foram desferidas) e por excesso nas sanções aplicadas (pena que se distancia do mínimo legal de forma desproporcional e, por consequência, fixação do regime inicialmente fechado).

[4] Art. 344 do Código Penal – Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral. Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Segundo o MPF, a denúncia detalhou as ocasiões nas quais ocorreu a prática dos crimes de coação aos ministros. A primeira delas, no vídeo chamado “Na ditadura você é livre, na democracia é preso!”, Silveira faz uso de mensagens depreciativas ao Supremo, estimulando seguidores a jogar um dos ministros numa lixeira, atacando sua dignidade e o descartando como ser humano. O segundo ato se traduz na afirmação “o STF e a Justiça Eleitoral não vão mais existir porque nós não permitiremos”. Por fim, o terceiro episódio se refere ao trecho do vídeo “Fachin chora a respeito da fala do General”, em que Silveira sugere dar uma “surra bem dada” no ministro, o que, além de atacar o direito de personalidade do magistrado, representa grave ameaça à sua integridade física, considerando-se a natureza, a seriedade e a intensidade das expressões no contexto em que foram proferidas.

[5] Art. 18 da Lei n. 7.170/83 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos. Ainda para o MPF, a primeira incitação cometida por Daniel Silveira ocorreu quando o parlamentar disse: “Eu quero que o povo entre dentro do STF; agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele”, instigando seus seguidores à prática dos crimes de invasão e agressão. O segundo ato se configurou quando o réu afirma “e o que nós queremos [convocar as Forças Armadas a intervir no STF]”, pois incute em sua audiência as mensagens de que as Forças Armadas podem de fato intervir no Supremo e que o órgão “deveria ser extinto”, propondo assim a sua abolição, o que tem aptidão para afetar suas atividades e a própria organização do Estado.

[6] Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 2795-6 Distrito Federal. Relator MAURÍCIO CORRÊA. Tribunal Pleno. Julgado em 8/5/2003);

[7] ADI 5874-DF.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Art. 7º, inciso X da CF/88.

[11] Art. 5o, inciso XLIV da CF/88.

[12] HC 81565-1 Santa Catarina. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Primeira Turma. Julgado em 19/2/2002)

*Não obtive acesso à inicial da ação proposta pelo PSOL.