Proteção de dados pessoais de pessoas falecidas

*Camila Chizzotti e Karim Kramel

Ainda carente de regulamentação, tendo em vista a ausência de nomeação da Agência Nacional de Proteção de Dados, a LGPD vem impondo desafios aos agentes de tratamento de dados que já iniciaram seus projetos de adequação e conduzindo os estudiosos da lei a diferentes interpretações e posicionamentos sobre alguns de seus dispositivos.

Uma das questões que ainda leva a posicionamentos antagônicos é a aplicabilidade da lei aos dados pessoais de pessoas falecidas.

O referido antagonismo resulta da ausência de previsão expressa na LGPD sobre sua não aplicabilidade aos dados de pessoas falecidas, diferentemente do GDPR[1] que em seu recital 27 exclui os dados de pessoas falecidas do amparo legal ao passo que garante aos Estados Membros a faculdade de criar regras para o tratamento dos dados dessas pessoas.

Porém, embora a norma não disponha expressamente sobre sua não aplicabilidade aos dados pessoais de pessoas falecidas, parece claro que ao indicar, já em seu artigo inaugural, ter por objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, que sua abrangência atinge apenas os dados pessoais de indivíduos vivos e, portanto, aqueles aptos a exercer os direitos constitucionais tutelados pela norma.

Ademais, não se pode olvidar que, nos termos dos artigos 2ᵒ e 6ᵒ do Código Civil, a personalidade da pessoa natural inicia-se com o nascimento em vida e extingue-se com a morte de forma que, se o objetivo da LGPD é assegurar o desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, parece certo que sua proteção recai apenas sobre os dados pessoais de pessoas vivas.

Tal constatação não infere automaticamente na conclusão de que os dados de pessoas falecidas não mereçam qualquer tipo de proteção, mas sim que, possivelmente, a LGPD não seja o diploma normativo aplicável para assegurar essa proteção, pois, repita-se, apenas estão aptas a exercer os direitos constitucionais fundamentais tutelados pela LGPD as pessoas naturais dotadas de personalidade, ou seja, as pessoas vivas.

Em vista da proteção de direitos uma vez tutelados pelo de cujus e ciente de que a imagem e a memória de uma pessoa sobrevive à sua morte física, o legislador determinou através do parágrafo único do artigo 12 do Código Civil, a legitimidade de herdeiros e familiares de pessoa morta para exigir a cessão de ameaças ou lesões aos direitos da personalidade dos quais era titular o de cujus, vejamos:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Segundo Silvio Romero Beltrão[2], a proteção post-mortem de certos bens da personalidade diz respeito a interesses próprios da pessoa, enquanto em vida, como valoração dos elementos que a individualizava como ser humano, sujeito ao tratamento digno antes e depois da sua morte. Ou seja, a proteção à memória e imagem dos elementos formadores do direito da personalidade sobrevive à morte do titular.

Por certo que o dispositivo legal ora sob análise não possui abrangência suficiente para proteger todos os dados pessoais de pessoa falecida, mas pode amparar a pretensão de cessar tratamento que ofenda direitos da personalidade uma vez titularizados quando em vida.

Assim, partindo da premissa de que os dados pessoais de falecidos não gozam da proteção da LGPD, é possível concluir que aos agentes de tratamento de dados é dispensada a atribuição de base legal e a implementação de medidas administrativas e técnicas para garantir a segurança dos dados pessoais em questão, salvo quando essa dispensa cause lesão aos direitos da personalidade que o de cujus possuía ainda em vida.

Todavia, os agentes de tratamento devem ainda estar atentos ao fato de que o tratamento abusivo de dados pessoais de pessoas falecidas pode gerar danos de ordem moral e material aos seus sucessores, danos esses passíveis de reparação e indenização nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil.

Existem ainda outras questões atreladas ao tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas que merecerão atenção da ANPD[3] quando do início de sua atividade regulamentadora, ainda que a proteção conferida pela LGPD não seja aplicável aos dados em questão, tais como: manutenção ou cessação dos tratamentos realizados mediante consentimento diante do falecimento do titular; necessidade de consentimento dos sucessores para tratamento dos dados de familiar falecido; legitimidade dos sucessores para exercício dos direitos elencados no artigo 18, apenas para citar algumas.

Por fim, ainda que a princípio a conclusão seja no sentido de que a proteção da LGPD não recai sobre dados pessoais de pessoas falecidas, diante da ausência de disposição expressa a respeito, o momento para os agentes de tratamento de dados é de agir com cautela e conservadorismo, devendo, ao menos por enquanto, estender as medidas de conformidade também aos dados de pessoas não vivas, considerando inclusive o possível dano reputacional que um incidente de segurança atrelado a esses dados possa acarretar para a instituição.

*Camila Chizzotti e Karim Kramel são advogadas do WFaria Advogados

[1] General Data Protection Regulation

[2]http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RPro_n.247.07.PDF

[3] Autoridade Nacional de Proteção de Dados