Recuperação judicial: a impossibilidade de cobrança da dívida em face dos coobrigados

*Wanessa Neves Lessa Romanhol

Desde que foi criada a recuperação judicial e extrajudicial de empresas, via da Lei 11.101/2005, muito se tem discutido acerca da possibilidade de cobrança da dívida em face dos coobrigados/garantidores, ou seja, aqueles que, juntamente com a devedora principal, in casu a empresa Recuperanda, se obrigaram pelo pagamento da dívida.

Nesse aspecto o § 1º[1] do art. 49 da citada Lei prevê a manutenção das garantias.

Entretanto, a parte dispositiva do § 2º[2] do art. 49 da mencionada Lei prevê a possibilidade de o plano de recuperação judicial estabelecer de modo diverso do que restou contratado originalmente.

Logo, considerando a exceção prevista na própria lei, nada impede que o plano de recuperação contenha cláusula que obste a cobrança da dívida em face dos coobrigados/garantidores.

Todavia, ao longo de muitos anos os tribunais pátrios se posicionaram no sentido de que, não obstante a aprovação e homologação do plano de recuperação, o credor pode continuar cobrando a dívida antiga dos coobrigados.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça chegou a editar, em 14/09/2016, a súmula 581, que assim dispõe: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.

Entretanto, a matéria continuou sendo objeto de muita discussão em todos os níveis de jurisdição, com debates acalorados defendendo ambas as teses.

Isto porque, se de um lado a manutenção das garantias beneficia os credores que as detêm, em sua grande maioria as instituições financeiras; de outro, o processo de soerguimento da empresa se torna uma ilusão, uma verdadeira letra morta, visto que a empresa recuperanda continuará responsável, regressivamente, pelas dívidas cobradas em face de seus coobrigados.

Contudo, após longos anos de intensa discussão no âmbito judicial, a jurisprudência começou a ver a questão sob um prisma diferente.

Em 02/04/2019, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 1.700.487/MT, trouxe grande inovação à recuperação judicial ao considerar válida a cláusula do plano de recuperação judicial aprovado e homologado que previa a supressão das garantias reais e fidejussórias, consoante se observa da ementa do acórdão:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO. 1. DELIMITAÇÃO DA CONTROVÉRSIA. 2. TRATAMENTO DIFERENCIADO. CREDORES DA MESMA CLASSE. POSSIBILIDADE. PARÂMETROS. 3. CONVOLAÇÃO DA RECUPERAÇÃO EM FALÊNCIA. CONVOCAÇÃO DE ASSEMBLEIA DE CREDORES. DESNECESSIDADE. 4. PREVISÃO DE SUPRESSÃO DAS GARANTIAS REAIS E FIDEJUSSÓRIAS DEVIDAMENTE APROVADA PELA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. VINCULAÇÃO DA DEVEDORA E DE TODOS OS CREDORES, INDISTINTAMENTE. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Cinge-se a controvérsia a definir: (…) c) se a supressão das garantias real e fidejussória estampada expressamente no plano de recuperação judicial, aprovada em assembleia geral de credores, vincula todos os credores da respectiva classe ou apenas aqueles que votaram favoravelmente à supressão. Por unanimidade de votos. (…). 4. Na hipótese dos autos, a supressão das garantias real e fidejussórias restou estampada expressamente no plano de recuperação judicial, que contou com a aprovação dos credores devidamente representados pelas respectivas classes, o que importa na vinculação de todos os credores, indistintamente. 4.1 Em regra (e no silêncio do plano de recuperação judicial), a despeito da novação operada pela recuperação judicial, preservam-se as garantias, no que alude à possibilidade de seu titular exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impor a manutenção das ações e execuções promovidas contra fiadores, avalistas ou coobrigados em geral, a exceção do sócio com responsabilidade ilimitada e solidária (§ 1º, do art. 49 da Lei n. 11.101/2005). E, especificamente sobre as garantias reais, estas somente poderão ser supridas ou substituídas, por ocasião de sua alienação, mediante expressa anuência do credor titular de tal garantia, nos termos do § 1º do art. 50 da referida lei. 4.2 Conservadas, em princípio, as condições originariamente contratadas, no que se inserem as garantias ajustadas, a lei de regência prevê, expressamente, a possibilidade de o plano de recuperação judicial, sobre elas, dispor de modo diverso (§ 2º, do art. 49 da Lei n. 11.101/2009). 4.3. Por ocasião da deliberação do plano de recuperação apresentado, credores, representados por sua respectiva classe, e devedora, procedem às tratativas negociais destinadas a adequar os interesses contrapostos, bem avaliando em que extensão de esforços e renúncias estariam dispostos a suportar, no intento de reduzir os prejuízos que se avizinham (sob a perspectiva dos credores), bem como de permitir a reestruturação da empresa em crise (sob o enfoque da devedora). E, de modo a permitir que os credores ostentem adequada representação, seja para instauração da assembleia geral, seja para a aprovação do plano de recuperação judicial, a lei de regência estabelece, nos arts. 37 e 45, o respectivo quórum mínimo. 4.4 Inadequado, pois, restringir a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral, somente aos credores que tenham votado favoravelmente nesse sentido, conferindo tratamento diferenciado aos demais credores da mesma classe, em manifesta contrariedade à deliberação majoritária. 4.5 No particular, a supressão das garantias real e fidejussórias restou estampada expressamente no plano de recuperação judicial, que contou com a aprovação dos credores devidamente representados pelas respectivas classes (providência, portanto, que converge, numa ponderação de valores, com os interesses destes majoritariamente), o que importa, reflexamente, na observância do § 1º do art. 50 da Lei n. 11.101/2005, e, principalmente, na vinculação de todos os credores, indistintamente. 5. Recurso especial parcialmente provido. [3]

Corroborando com esse novo entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em sede de recursos cuja defesa da empresa Recuperanda foi patrocinada pela Romanhol Advogados[4], confirmou a validade da cláusula do plano de recuperação judicial que previa a extensão da novação aos garantidores, impedindo, por conseguinte, o prosseguimento das ações de execução, monitória e cobrança em face dos mesmos, vejamos:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL EM FACE DE TODOS OS COOBRIGADOS – CLÁUSULA NO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL ESTENDENDO OS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO AOS DEMAIS

DEVEDORES – POSSIBILIDADE – RECURSO PROVIDO.

É válida a previsão no plano de recuperação judicial de renúncia às garantias conferidas pela lei de regência e, uma vez aprovadas pelo quórum previsto na Lei 11.101/05, tal cláusula é oponível a qualquer crédito sujeito ao plano, indistintamente.

– A assembleia geral de credores consiste em órgão máximo da referida classe que, uma vez deliberando com pela supressão das garantias fidejussórias quando da aprovação do plano, vincula a todas as partes envolvidas, quer sejam elas credores ou devedores.

– Recurso provido. (g.p.)[5]

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE COBRANÇA – DETERMINAÇÃO DE SUSPENSÃO DO FEITO – HIPÓTESE DE CABIMENTO – TAXATIVIDADE MITIGADA DO ROL DO ART. 1.015, DO

CPC – EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL – PLANO HOMOLOGADO – EFEITOS APÓS HOMOLOGAÇÃO – SUSPENSÃO EM RELAÇÃO AOS COOBRIGADOS – CLÁUSULA EXPRESSA

POSSIBILIDADE. (…) Nos termos do REsp 1.700.487/MT, a supressão de garantias especificamente prevista no Plano de Recuperação Judicial, aprovado pela Assembleia Geral de Credores, como parte integrante das tratativas negociais, vincula todos os credores titulares de tais direitos, já que reconhecida pelo tribunal superior a autonomia dada à AGC para estabelecer as condições diversas quanto às garantias anteriormente ajustadas. (g.p.)[6]

Esta é, portanto, uma grande conquista no âmbito recuperacional, a qual deve ser prestigiada pelos demais Tribunais Pátrios, a fim de que o tão festejado instituto da recuperação de empresas não caia em desuso.

*Wanessa Neves Lessa Romanhol é advogada formada na PUC/GO, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes, UFG e LFG. LLM em Direito Empresarial pelo IBMEC/GO.

[1] Art. 49. (…).

  • 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. (§ 1º do art. 49 da Lei 11.101/2005).

[2] Art. 49. (…).

  • 2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial. (§ 2º do art. 49 da Lei 11.101/2005).

[3] STJ. 3ª Turma, REsp. 1.700.487/MT, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Julgado em 02/04/2019. Sítio eletrônico: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente =ATC&sequencial=94863913&num_registro=201702466617&data=20190426&tipo=5&formato=PDF. Consultado em 09/09/2020.

[4] https://romanhol.adv.br/

[5] TJMG, 20ª Câmara Cível, AI nº 1.0000.20.077406-5/001, Número Verificador: 100002007740650012020867929, Des. Rel. Lílian Maciel, julgado em 12.08.2020. Sítio eletrônico: http://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?tipo=1&numeroVerificador=100002044236510012020961961. Consultado em 09/09/2020.

[6] TJMG, 11ª Câmara Cível, AI nº 1.0000.20.442365-1/001, número verificador: 100002044236510012020961961, Des. Rel. Adriano de Mesquita Carneiro, julgado em 02.09.2020. Sítio eletrônico:http://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?tipo=1&numeroVerificador=100002044236510012020961961. Consultado em 09/09/2020.