O tempo que sobra nas cortes superiores e que nos é tirado enquanto cidadãos em busca da democracia

*Marcelo Bareato

São tempos difíceis esses que atravessamos. De um lado buscamos –  incessantemente – direitos que não sabemos onde estão, de outro ouvimos promessas de que chegaremos lá com o combate aos fantasmas que nós mesmos criamos, inconscientemente, por acreditar na honestidade alheia e na feitura de leis mais severas que acabarão com a criminalidade e a corrupção.

O que não percebemos, é que temos o necessário.

Nos bastaria conhecer as leis já existentes e suas formas de aplicação que nunca chegaram nas escolas e são omitidas do senso comum, com o propósito de manter na obscuridade aqueles que serão responsáveis pela ascensão ao poder de outros que proporcionam tamanha cegueira.

É deste ponto que começaremos a falar sobre a lei penal e como ela vem sendo desmantelada pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ e Supremo Tribunal Federal – STF em sistemáticas interpretações, totalmente desvinculadas das leis existentes.

Comecemos, pois, pela interpretação da lei penal.

Interpretar significa extrair da norma seu exato alcance e real significado. Se assim o é, a natureza interpretativa, outra não será, do que buscar a vontade das leis.

São espécies dessa interpretação:

I – quanto ao sujeito: a) autentica, que é aquela feita pelo próprio órgão encarregado da elaboração do texto, qual seja, o Congresso Nacional; b) doutrinária, que é aquela feita pelos estudiosos do direito; c) judicial, que corresponde aquela feita pelos órgãos jurisdicionais, ou seja, pelos juízes e tribunais e, por essa razão, não tem força obrigatória;

II – quanto aos meios empregados: a) gramatical, que leva em conta o sentido literal das palavras; a) teleológica, que busca a vontade da lei, atendendo aos fins e a sua posição dentro do ordenamento jurídico;

III – quanto ao resultado: a) declarativa, quando há perfeita correspondência entre a palavra da lei e a sua vontade; b) restritiva, quando a letra escrita da lei foi além da sua vontade e por isso a interpretação deverá restringir o seu significado; c) extensiva, quando a letra escrita da lei ficou aquém de sua vontade, e o interprete deverá ampliar o seu significado.

Por óbvio, no direito brasileiro também trabalhamos com a interpretação progressiva, que é aquela que determina que, ao longo do tempo, as leis devem ser revistas para se adaptar às mudanças político-sociais e as necessidades presentes, mas sem qualquer conotação moral.

Também é certo que, em matéria penal, qualquer tipo de analogia ou interpretação analógica, só poderá ser usada se for para beneficiar o acusado e aí, entraríamos em outro campo envolvendo os artigos 1º e 2º do Código Penal (CP), o qual não nos atrevemos nesse momento.

Entendido dessa forma e certos de que quando alguém presta um concurso para magistratura, uma vez aprovado, recebe jurisdição, que é o poder dever de dizer o direito, ou seja, a obrigação de abandonar qualquer julgamento moral e apenas e tão somente, aplicar a norma ao caso concreto, discutindo o alcance da lei sem provocar no cidadão comum, a controvérsia sobre dilemas, verificamos o ponto chave de nosso artigo. São os dilemas, ou julgamentos baseados na moral do magistrado que colocam o direito de lado e criam as jurisprudências, cada vez mais desencontradas, causando recursos sobre recursos, na busca de reavivar o direito posto.

Nesse sentido, é importante passarmos ao estudo de 2 (dois) casos recentes:

1º – STJ – define quando é cabível a causa de diminuição de pena do artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 – notícia veiculada em todas as mídias no dia 15/10/2020. Trata-se de interpretação na qual o condenado agora passa a ter a obrigação de preencher os 4 requisitos do parágrafo 4º para fazer jus a diminuição e fica ainda restrito às circunstancias do caso concreto.

Nesse caso a norma estabelece uma diminuição variante entre 1/6 a 2/3 da pena base de 5 anos de reclusão, se o agente: 1) for primário; 2) ostentar bons antecedentes; 3) não se dedicar às atividades criminosas; 4) não integrar organização criminosa.

Como se vê, o parágrafo 4º, do artigo 33 da Lei de Drogas, impõe requisitos ao agente e, em matéria penal, quando a lei impuser requisitos, caso o agente preencha os tais requisitos, o juiz não pode, mas tem que aplicar a norma. Mais ainda, existe uma variante na quantidade de diminuição, ou seja, a maior ou menor diminuição fica condicionada a quantidade de requisitos preenchidos.

Logo, não poderia o STJ interpretar fora da lei, criando o que chamamos de julgamento moral, notadamente quando o STF vem decidindo de forma contrária, determinando a não aplicação de prisão preventiva ao pequeno traficante e a conversão da pena do parágrafo 4.º em restritiva de direitos, além de iniciar, o agente, no regime aberto (artigo 33 do CP).

2º – STF – a ausência de renovação da prisão após 90 dias não revoga automaticamente a prisão preventiva – notícia também veiculada em todas as mídias no dia 15/10/2020. Trata-se da discussão envolvendo a concessão de liminar ao traficante André do Rap, suspensa pelo ministro Luiz Fux.

No caso em questão, é importante sabermos que em nosso ordenamento jurídico estão em vigor, atualmente, 4 (quatro) formas de prisões: 1) prisão pena, aquela que só se inicia após o transito em julgado de sentença penal condenatória; 2) a prisão em flagrante delito (artigo 302 e seguintes do CPP), que é aquela onde o agente é pego cometendo o crime; 3) a prisão temporária (Lei n. 7.960/1989), que decorre de mandado de prisão e pode ter a duração de 5 (cinco) dias, prorrogáveis por mais 5 (cinco) dias, em caso de crime comum e que é prisão para investigação, ou seja, prisão para o inquérito policial; 4) a prisão preventiva (artigo 312 e seguintes do CPP), conhecida como prisão para o processo penal que, obedecendo os ditames do Pacto de San José da Costa Rica, ao qual somos signatários, não pode ultrapassar o prazo de 90 dias.

Como prisão para garantir o processo, ou seja, para garantir que o agente seja processado e não atrapalhe o andamento do feito, temos previsão residual nos artigos 282 e 319 do CPP, com a determinação de que somente poderá ser decretada em último e extremado caso. Da mesma forma, a legislação prevê a possibilidade de decretação tantas e quantas vezes forem necessárias, mas desde que o juiz elenque os motivos do seu convencimento. Cessando aqueles motivos que a autorizaram, o magistrado está obrigado a restituir a liberdade do agente se ainda o processo não se encerrou, ou motivá-la novamente.

A título de curiosidade, o prazo de 90 (noventa) dias decorre também da combinação dos artigos 10 do Código de Processo Penal (CPP), o qual diz que, estando solto o acusado o inquérito policial deverá terminar em até 30 (trinta) dias e do artigo 400 do CPP, o qual prevê o rito mais abrangente depois daquele preconizado para o tribunal do júri, que é o ordinário, com prazo para finalizar a instrução em no máximo 60 (sessenta) dias.

Assim, percebam que, numa única tacada, motivados pela ausência de comprometimento do magistrado responsável pelo processo e julgamento o traficante André do Rap, juiz esse que deveria exercer suas funções dentro do que a lei prevê (jurisdição é o poder dever de dizer o direito), tivemos o julgamento de uma liminar em habeas corpus que determinou o cumprimento da lei (e deveria ter remetido o caso ao CNJ para que ele apurasse eventual falha do juiz do processo), um julgamento que determinou a suspensão da aplicação correta da lei, ambos no STF e uma determinação totalmente contrária a norma (interpretação judicial) sobre as disposições do artigo 33, § 4º da Lei de Drogas!

Ou seja, julgamos dilemas (julgamentos de acordo com a moral dos ministros), deixamos a lei e sua interpretação de lado e desmontamos, mais uma vez o ordenamento jurídico que já padece de democracia há algum tempo.

É sobre esse contexto que chamamos a atenção de vocês, nossos leitores, no sentido de que, quanto mais ficarmos inertes e sem conhecer nossas leis, menos obrigaremos aqueles que recebem muito para aplica-las, a seguir os ditames legais. Além disso, mais tempo terão, os julgadores das Cortes Superiores, para discutir aquilo que entendem ser a moral dos dias atuais, nos afastando, cada vez mais da cidadania, da prestação jurisdicional e da democracia que tanto buscamos.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pele Estácio de Sá/RJ, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal da PUC/GO, advogado criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, conselheiro nacional da Abracrim, presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO.