O que é DeepNude?

*Karina Bueno Timachi

O que é DeepNude? O termo surgiu pela primeira vez aos 27 de junho de 2019, para designar uma ferramenta do setor dedeepfakes (manipulação avançada e automatizada de imagens), em funcionamento desde abril de 2019 (dois mil e dezenove), que utiliza algoritmos de inteligência artificial para criar um falso nude de qualquer mulher, a partir de fotos simples, mesmo se estiverem vestidas.

Atualmente, o termo é usado para designar adulterações de fotos ou vídeos, realizadas através de inteligência artificial, para produzir nudes de pessoas, com o fito de posterior divulgação online. Para produção das montagens, existem sites e aplicativos que o fazem de forma gratuita, utilizando-se de uma tecnologia cada vez mais acessível e perigosa – o DeepNude era um deles.

Segundo informações do site gizmodo.uol, o aplicativo batizado sugestivamente de DeepNude (“Nudez Profunda”), se baseia no uso de redes contraditórias generativas (GANs), que detectam e melhoram quaisquer falhas, dificultando para os detectores de deepfake decodificá-los.

Os GANs também são usados como um método popular para a criação de deepfakes, contando com o estudo de dados em abundância para “aprender” como desenvolver novos exemplos que imitam a pessoa real, com resultados extremamente precisos – e, nesse caso, o aplicativo DeepNude foi treinado com mais de dez mil nudes de mulheres.

O criador do DeepNude, que se identificou pelo pseudônimo de “Alberto”, disse ao Motherboard (braço tecnológico da Vice nos Estados Unidos), ter se inspirado em suas lembranças dos clássicos óculos de raio-x, que faziam um enorme sucesso nos EUA, na década de 80, prometendo dar ao usuário a capacidade de enxergar o corpo feminino por baixo de suas roupas: “Como todo mundo, fiquei fascinado com a ideia de que eles realmente poderiam existir e essa memória permaneceu”, disse Alberto.

Ele diz que é um “entusiasta da tecnologia” em vez de voyeur e é motivado pela curiosidade e entusiasmo da Inteligência Artificial, assim como pelo desejo de averiguar se haveria um “retorno financeiro” dessas experiências.

Um aspecto negativo com o qual o Alberto ficou preocupado, foi a possível repercussão legal, com o contrato de licença do DeepNude afirmando que “cada imagem editada através deste software é considerada uma brincadeira”. Ele ainda ressaltou que o “serviço de entretenimento” “não promove imagens sexualmente explícitas” – o que é uma afirmação no mínimo absurda de se fazer, dado o nome do aplicativo e suas funcionalidades.

Agora, um detalhe interessante sobre a criação e disponibilização do aplicativo DeepNude – e que nos assombra –, reside no fato de que, em seu contrato de licença, a especificação é que o aplicativo se trata de um serviço de entretenimento que “não promove imagens sexualmente explícitas”, o que é uma afirmação falsa.

E foi justamente esse detalhe que impulsionou a retirada do aplicativo do ar: a falsa especificação no contrato e não exatamente a criação de falsos nudes de mulheres, pois a legislação da maioria dos países (inclusive brasileira) ainda não tem um posicionamento oficial sobre como lidar com deepfakes!

O corpo é criado virtualmente, mas o crime pelo qual os autores da montagem podem responder é real. Algumas regiões do mundo já preparam regras que incluem deepfakes nas legislações sobre Pornografia da Vingança. Aliás, essa conduta já possui previsão legal na legislação brasileira e se encaixa como registro não autorizado da intimidade sexual, nos conteúdos modificados no artigo 216-B do Código Penal, descrito no parágrafo único: “na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo”, com pena de seis meses a um ano e multa.

Como já esclarecido, o criador do software, em entrevista ao Motherboard, informou tê-lo criado com amigos para “fins de entretenimento próprio” e ressaltou que o aplicativo tem falhas e “nem é tão bom assim”. Entretanto, o software se transformou rapidamente no programa favorito dos pervertidos, assediadores e perturbados em geral. Essa popularidade se deve a facilidade para uso do aplicativo.

Nesse toar, gostaria de entender o conceito de “entretenimento” proposto pelos idealizadores do aplicativo DeepNude. Isso porque, salvo engano, esse aplicativo é a personificação do não consentimento: uma mulher toma a iniciativa de se vestir adequadamente e um usuário anônimo as remove sem seu consentimento. Este detalhe é obscurecido pela sensação de humor inteligente do programa e pelo duplo anonimato (os usuários são protegidos por transações bitcoin e, claro, os desenvolvedores não são vistos), o que torna o programa, inicialmente, inofensivo. Do ponto de vista ético, usar o site é essencialmente uma violação sexual – e assemelha-se ao ato de tirar a roupa ou fotografar uma mulher dormindo. Legalmente falando, pode ser considerado assédio e é extremamente constrangedor e humilhante! O nível de realismo varia de acordo com a foto – se a pessoa estiver só de biquíni ou lingerie, os resultados se tornam mais expressivos e convincentes.

De acordo com a VICE — que testou o DeepNude usando fotos de modelos diversas —, o aplicativo funciona surpreendentemente bem, agindo com eficácia especialmente nos casos em que a mulher estiver usando trajes mais reveladores. A ferramenta possui uma versão gratuita que aplica tarjetas nas partes íntimas; ao adquirir uma licença, esses elementos são retirados, mas ainda assim, uma marca-d’água “Fake” é inserida nas fotos.

Ele passou a ganhar repercussão após uma reportagem do Motherboard, a qual informava que o programa era gratuito e funcionava em computadores Windows e Linux. Quem quisesse imagens em alta resolução, poderia comprar a versão premium por US$ 50 (cerca de R$ 200).

Após a repercussão da matéria do Motherboard, que aponta diversas questões éticas e morais sobre esse tipo de software, o desenvolvedor retirou do ar os links de downloads para o DeepNude, após causar muita polêmica na Internet face às informações veiculadas por vários jornais internacionais – do que estava em jogo e os riscos que poderiam advir da perpetuação e uso inadequado do aplicativo. Em uma conta no Twitter, ele anunciou que “achamos que venderíamos algumas cópias todo mês de maneira controlada… Nunca achamos que ele viralizaria e que não poderíamos controlar o tráfego”.

Em entrevista ao Motherboard, o desenvolvedor disse ainda que “o que você pode fazer com o DeepNude, você também pode fazer com o Photoshop (depois de ver algumas horas de tutoriais) ”, mas que não queria ser o responsável por essa tecnologia.

Sobre o descontinuamento da ferramenta, usuários mostraram descontentamento extremo. Houve quem atribuísse a medida como “pressão do feminismo” e postasse críticas sociais. O comunicado causou revolta nos seguidores de “Alberto”, que começaram, ali mesmo, a dizer que tinham o aplicativo baixado — lembrando que o DeepNude tinha uma versão gratuita e uma paga — e que iriam disponibilizar links para download via repositórios de arquivos.

Conclusão: o software ainda pode ser encontrado na internet e provavelmente não deixará de existir. Como aponta o Verge, cópias do DeepNude estão disponíveis em fóruns, chats, canais do Telegram, servidores do Discord, descrições de vídeos no YouTube e até mesmo no repositório GitHub. Uma outra reportagem do Motherboard aponta que algumas plataformas, como o Discord, estão derrubando canais de distribuição do software.

Os vendedores anônimos vendem versões do DeepNude por US$ 20 (pouco mais de R$ 76) e seus “gestores” alegam ter aprimorado a estabilidade do aplicativo (ele tinha tendências de cair sem aviso) e removido a função que adicionava marcas d’água às fotos falsas. O recurso presente na versão original estava implementado supostamente para evitar o mau uso do software.

“Temos o prazer de anunciar a versão completa e limpa do DeepNude V2. Crackeamos o software, e estamos fazendo ajustes e aprimorando o programa”, escreveu um dos vendedores no Discord. Isso porque, a qualidade dos resultados do aplicativo original ficavam aquém do esperado: com detalhes como borrões de imagem e granulações estranhas permeando o “falso nude”.

Ademais, como já esclarecido alhures, os criadores do aplicativo original não removeram as marcas d’água das imagens geradas (inclusive na versão premium) para garantir que, caso a foto fosse espalhada por aí, ficasse claro se tratar de uma foto fake. Na versão gratuita, por exemplo, a marca d’água ocupa toda a imagem, enquanto na versão premium, quase toda a nudez é apresentada. Já a versão alterada do software não deixa marcas d’água.

O criador do software justificou o fim do aplicativo sob o argumento de que “a chance de se fazer mau uso dele é alta demais”, implicando que o DeepNude poderia ser utilizado para abusar e assediar mulheres na internet – e ele está coberto de razão.

Para começo de conversa, o software é baseado em um algoritmo de código-aberto chamado pix2pix, desenvolvido em 2017 por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley e só funciona com fotos de mulheres. Basta uma imagem de mulher vestida para que a rede neural troque as roupas por imagens de seios e vulva realistas.

A nosso ver, o aplicativo do DeepNude possui um certo tom de misoginia na sua concepção, não apenas pela possibilidade de criar nudes de qualquer mulher, mas também por ele funcionar somente com mulheres: misoginia esta justificada pelo programador, sob o argumento de que é mais fácil encontrar fotos de mulheres nuas do que de homens nus. Assim, as tentativas de upload de fotos de homens resultam simplesmente na inserção de seios e uma vulva na imagem adulterada.

Colaciona “Alberto” (criador do DeepNude) que o aplicativo é dotado de múltiplas redes e cada uma delas tem uma tarefa diferente: localizar e mascarar as roupas, especular a anatomia, renderizar etc -, defendendo, ainda, que a existência do aplicativo, por si só, não é maliciosa.

Uma reportagem do site HuffPost destacou como ser vítima de pornografia e nudez pode trazer consequências para a vida de alguém. Tal como acontece com a Pornografia da Vingança (Revenge porn), essas imagens podem ser usadas para envergonhar, assediar, intimidar e silenciar mulheres. Existem fóruns onde homens pagam especialistas para criar deepfakes de colegas de trabalho, amigos ou membros da família e ferramentas como o DeepNude facilitam a criação de tais imagens com o toque de um botão.

O DeepNude não só reforça a ideia de que “internet é uma terra sem lei”, ao gerar um conteúdo onde a vítima não sabe que está sendo exposta, como está ligado à ideia de que o corpo da mulher pode ser explorado sem consentimento. A prática reflete, também, a ideia do machismo e do patriarcalismo, de conferir à mulher a função de objeto sexual, sugerindo que o corpo dela pode ser utilizado livremente para qualquer fim. Não é só um golpe baixo contra a mulher: é um crime, assim como gravá-la em atos sexuais. Mas o pior dessa história toda, repousa no fato de que embora as mulheres sejam vítimas desse tipo de violência, ainda são julgadas quando as fotos são divulgadas.

Infelizmente existe uma questão moral muito forte enraizada sobre a criminalização da conduta da mulher. Existe uma cobrança forte de recato sexual. Ir contra esse comportamento é visto como errado e a mulher se sente culpada. Ou ela é perfeita e santa ou é o demônio. Já os homens podem ser bons, ruins ou médios. As mulheres não. Como consequência de tal exposição e humilhação, expõe-se a vítima a comentários grosseiros, perda de emprego e existem ainda relatos de tentativas de suicídio – algumas com sucesso – por parte das vítimas.

Os danos potenciais de ferramentas como essa são enormes. Os efeitos na saúde mental de quem sofre Pornografia da Vingança são devastadores e, agora, ferramentas como essa deixam a um clique de qualquer pessoa a possibilidade de espalhar uma imagem falsa, mas que se parece muito com um conteúdo verdadeiro.

Embora as imagens sejam facilmente identificadas como falsas, isso não minimiza o impacto que alguns indivíduos podem sofrer se houver mau uso do aplicativo. Deepnudes são uma triste parte da trajetória dessa tecnologia, já que permite a criação dessas imagens de forma rápida e fácil.

Apesar da lei prever punição para quem cria imagens como as feitas pelo código do DeepNude, o problema é, primeiro, encontrar o autor da imagem depois que ela caiu na rede e, segundo, provar que a imagem é falsa. Muitas vezes, a imagem é tão bem feita que é difícil fazer a perícia. E mesmo contratando perícia particular, pode demorar tanto a confecção do laudo como chegar a uma conclusão. Isso acontece, também, por falta de profissionais.

Entretanto, quando se é vítima do DeepNude, é recomendável que a vítima colha o máximo de provas que puder: dar prints da foto publicada, tentar identificar a URL da página em que a montagem foi divulgada são os primeiros passos. Com isso em mãos, a próxima providência é procurar uma delegacia que investigue crimes cibernéticos ou uma especializada em defesa da mulher e registrar uma ocorrência. Procure também um advogado especialista em Direito Digital de sua confiança, imediatamente. Isso é importante para que o profissional possa te orientar sobre como guardar as provas do crime de forma correta, para que possa ser utilizada em juízo.

Se foi uma foto compartilhada em grupos, como de WhatsApp, a mulher deve pedir para quem tem acesso registrar, com o fito de identificar os participantes do grupo. Pode-se buscar, também, através do trabalho do advogado especialista em Direito Digital e de uma ação judicial, a remoção do conteúdo impróprio da internet, a identificação de outros agressores (pessoas que fizeram comentários ofensivos ou ajudaram a “espalhar” o conteúdo) e um pedido de indenização.

A divulgação do DeepNude é mais uma forma de violência moral e sexual e pode ser enquadrada na Lei Maria da Penha como violência psicológica, por ter provocado violação da intimidade da vítima – e aqui entra a disseminação de fotos tanto falsas quanto verdadeiras. A pessoa que se sentir constrangida ou abalada emocionalmente pela disseminação do material pode, ainda, procurar apoio de terapia ou outras redes para
conseguir lidar com a situação.

Além da investigação criminal, existem outras formas de buscar ajuda: se a foto foi encontrada nas redes sociais, como Twitter, Instagram ou Facebook, a publicação pode ser denunciada às empresas, para que o autor da imagem seja punido. A SaferNet recebe denúncias, se houver link da imagem e tem um canal de apoio para quem sofre com crimes praticados na internet, com orientação e indicação de especialistas para cada caso.

Segundo relatório de uma empresa de segurança na internet chamada Sensity, existe um canal no Telegram onde é possível enviar qualquer foto de mulher – mesmo uma fotografia normal colocada nas redes sociais – e um bot (robô digital) trata de transformar aquela imagem numa foto sem roupa e com o rosto daquela pessoa.

Segundo a Sensity, isso já aconteceu com fotos de mais de 100 mil mulheres, que não fazem ideia de que suas imagens foram utilizadas dessa forma. Segundo informações da empresa de segurança digital Sensity, pelo menos 104.852 mulheres tiveram suas fotos divulgadas nas redes sociais e usadas, através de um processo automático com tratamento de imagem por inteligência artificial, para criar fotos convincentes em que parecem estar nuas.

Não foi revelado o nome do canal no Telegram, para evitar maior adesão, mas a Sensity sublinha que basta fazer upload de apenas uma foto de mulher para que o software consiga produzir uma imagem que parece real. De acordo com o relatório, cerca de 70% das imagens utilizadas pertenciam a pessoas comuns e não a celebridades. O aplicativo DeepNude prova como a tecnologia virtual pode ser usada como arma contra as mulheres.

Embora o DeepNude tenha sido removido em junho de 2019, o código-fonte permanece disponível em vários sites de torrent e repositórios de código aberto. E essa busca compulsiva pela pornografia revela esboços firmes de uma sociedade depressiva, carente e solitária. Isso porque, a pornografia promete dar corpo e forma às fantasias e desejos que não podem ou que a pessoa não consegue viver na vida real, mas na prática não é o que acontece: quanto mais pornografia um indivíduo consome, mais ele ou ela tendem a se afastar emocionalmente de pessoas reais e a confiar na pornografia.

Eventualmente, torna-se mais difícil relacionar-se com uma pessoa real ou formar um relacionamento real e o isolamento e a solidão resultantes alimentam a necessidade de mais pornografia. Por que? Porque uma das consequências não incomuns é a perda de empatia pelas outras pessoas.

Seres humanos deixam de ser humanos e passam a ser vistos como meros objetos sexuais. Os únicos atributos que importam são aqueles relacionados ao sexo enquanto o aspecto emocional de cada relação deixa paulatinamente de existir.

Pornografia (e principalmente o vício nela) é um assunto que ainda carrega certo estigma. Por isso, em casos de a perda de noção de realidade, a sensação de estar distante do outro, a mudança de rotina e quadros de compulsões por combinar ansiedade e solidão, o ideal é buscar ajuda.

*Karina Bueno Timachi é protetora de animais independentes, gateira, advogada, palestrante, escritora, idealizadora do projeto “Empodere-se”, Presidente Fundadora da AMU VIDA – Associação Nacional das Mulheres Vítimas de Violência Doméstica e presidente Fundadora da ABRA FAMA – Associação Brasileira de Direito de Família, Sucessões e Cível.