O ANPP e as estratégias da defesa durante a Persecução Penal

Kelvin Wallace Castro dos Santos*

É de conhecimento na seara criminal, que o advento da Lei n. 13.964/2019 (Lei Anticrime), trouxe a inclusão no Código de Processo Penal, de instituto que visa assegurar uma justiça penal consensual ou negociada, por meio de acordo entre Ministério Público e Defesa, comumente conhecido como acordo de não persecução penal – ANPP (Art. 28-A, caput, incisos I a V, e parágrafos 1º a 14º).

Assim, tal instituto vem sendo um poderoso instrumento de negociação processual penal que, se preenchidos os requisitos legais, exigirá uma postura diferenciada por parte da defesa, para alcançar estrategicamente sua aplicação durante todo o curso da persecução penal [1].

A primeira iniciativa da Defesa em postular o ANPP nasce entre a formalização do auto de prisão em flagrante e/ou na fase de investigação criminal, audiência de custódia (quando for caso de sua realização e a especificidade do caso permitir) até o oferecimento ou recebimento da denúncia, permitindo neste cenário, a vigilância da Defesa sobre a presença dos requisitos legais de cabimento do acordo de não persecução penal ao caso concreto, para fins de postular sua celebração na primeira oportunidade.

Diante disso, conforme o comando do art. 28-A, caput, do CPP, não sendo caso de arquivamento do inquérito, ou seja, presentes as condições de admissibilidade da acusação e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática da infração penal, seja na investigação ou na oportunidade da realização do acordo, e por fim, ter sido o crime praticado sem violência ou grave ameaça com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público deverá (entendemos que se trata de direito público subjetivo do imputado) propor o acordo de não persecução penal.

Superada esta fase preliminar, e constatando que o processo está em curso com o recebimento da denúncia pelo juiz, a Defesa poderá postular a aplicação do ANPP, a qualquer tempo através de simples petição ou em sede das peças cabíveis durante a persecução penal, qual seja, Resposta à Acusação/Defesa Prévia/Defesa Preliminar (Art. 369 e 396-A do CPP, 55 da Lei 11.343/06 e 514 do CPP), ou até mesmo nas Alegações Finais sob a forma de Memoriais Escritos (Art. 403 §3º do CPP ou Art. 404, parágrafo único do CPP).

Nestas hipóteses manejadas durante o andamento da ação penal, a celebração do acordo terá como suporte o preenchimento dos requisitos legais naquela oportunidade ou nos casos excepcionais, quando existir teses de desclassificação do delito na etapa em questão, que possa tornar possível por consequência, a aplicação do benefício do ANPP, conforme posicionamento recente da 6ª Turma do STJ [2].

Não se desconhece que existia no passado também recente, posicionamento diverso na 5ª e 6ª Turma do STJ, sobre a aplicação do ANPP aos processos em curso, que naquela ocasião firmaram compreensão de que, considerada a natureza híbrida da norma e diante do princípio tempus regit actum em conformação com a retroatividade penal benéfica, o acordo de não persecução penal incidiria aos fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, desde que ainda não tenha ocorrido o recebimento da denúncia [3].

Entretanto, esse posicionamento não merece prosperar, pois com base no precedente do c. STF [4], e sobretudo pelo provimento de recente Recurso Especial julgado pela 5ª Turma do STJ, ficou definido que, quando houver mudança no quadro fático-jurídico e tornar viável a possibilidade de aplicação do ANPP, o Juiz/Tribunal deve converter o feito em diligência para que o Ministério Público possa propor o benefício [5].

Com efeito, para melhor compreensão do tema, não há dúvidas de que, mesmo a pequenos passos, com a jurisprudência caminhando neste rumo, consagra-se um campo fértil para a Defesa postular também a aplicação do ANPP em ocasião da sentença condenatória, visto que, quando da sentença estabelecer condenação em crime/pena que permita a aplicação do benefício, haverá a oportunidade defensiva de impugnar o ato, por meio da interposição da apelação criminal (Art. 593, I, do CPP, com uso do efeito suspensivo à luz do art. 597 do CPP).

Nesta etapa, existindo espaço ao caso concreto, será imprescindível que a Defesa registre no recurso a presença dos requisitos legais de cabimento do acordo devido a mudança no quadro fático-jurídico, resguardando ao magistrado em juízo de admissibilidade ou de prelibação do recurso, a análise de remessa dos autos para o Ministério Público antes de encaminhar ao Tribunal.

Ademais, outro mecanismo possível, é quando da apresentação das razões recursais da apelação criminal (artigo 600 e seus parágrafos do CPP), cabendo a Defesa postular em sede preliminar, a aplicação do ANPP ao caso concreto, ressaltando a mudança no quadro fático-jurídico, mas dessa vez, caberá ao egrégio Tribunal de Justiça/TRF, apreciar a tese e antes de julgar o mérito das razões recursais, se mostra justo e necessário a conversão do feito em diligência (Art. 616 do CPP), remetendo os autos para o Ministério Público apreciar a aplicação do benefício.

Há ainda argumento na jurisprudência sustentando o cabimento do ANPP não apenas aos processos que se encontrem em fase recursal [6], mas também aplicando a processos que se operou o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, reconhecendo o efeito retroativo da norma e oportunizando o benefício [7].

Nessa linha de raciocínio, mesmo diante dos processos pendentes de julgamento de apelação, recurso especial, recurso extraordinário ou até mesmo dos processos com trânsito em julgado, ainda restará à Defesa continuar manejando Recursos ou medidas impugnativas em busca da celebração do acordo, pois enquanto presentes os requisitos legais de cabimento, compreende-se pela possibilidade de oferecimento do benefício [8].

Dessa forma, longe de esgotar as inúmeras possibilidades de mecanismos que a Defesa pode utilizar na persecução penal, vale fomentar a iniciativa dos operadores do direito nas estratégias aptas à celebração do ANPP, não só pelo fato do reconhecimento de um direito, mas também para estimular o debate, diálogo e a negociação no curso do processo, que são predicados simples e perfeitamente necessários em um Estado Democrático de Direito.

*Kelvin Wallace Castro dos Santos é advogado criminalista e professor universitário. Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio-GO). Especialista em Docência Universitária (Unialfa-GO). Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim-GO. E-mail: kelvinwallace.adv@gmail.com

REFERÊNCIAS

[1] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 220-226.

[2] (STJ – AgRg no Recurso Especial nº 1.201.963 – SP).

[3] (STJ – EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 1.681.153/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 8.9.2020, DJe 14.9.2020; AgRg no HC 628.647/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Redatora do acórdão Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 7.6.2021); (STJ – Terceira Seção, em 8/6/2021, aprovou, por unanimidade, a proposta de afetação do julgamento do REsp n. 1.890.343/SC e do REsp n. 1.890.344/RS à sistemática dos recursos repetitivos – Tema Repetitivo n. 1098).

[4] (STF – HC n. 194.677, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 13/08/2021).

[5] (STJ – AgRg no Recurso Especial Nº 2.016.905 – SP).

[6] (STJ – REsp. no 2004.00.34885-7, Min. Félix Fischer, 5ª Turma).

[7] (STF – Ag. Regimental no Habeas Corpus nº 217.275 – SP).

[8] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2021. p. 179-194.