Américo Ribeiro Magro e Cícero Goulart Assis*
Crítico ou elogioso à conjuntura nacional vigente, qualquer brasileiro médio concorda que dentre as missões inalienáveis do Estado brasileiro está a promoção da educação em todos os níveis.
Pudera: o direito à educação está presente no constitucionalismo brasileiro ao menos desde a Carta do Império de 1824, sendo natural que também fosse abraçada pela Constituição de 1988, que, de vocação cidadã expressa, não poderia deixar de elevá-la à condição de direito fundamental na cimeira dos direitos sociais (art. 6º).
Particularmente, ao dispor que é “direito de todos e dever do Estado e da família”, a ser “promovida a incentivada com a colaboração da sociedade” (art. 205), o Constituinte fez questão de revelar que se trata de agir impositivo do qual dependem tanto o despertar da cidadania, quanto o desenvolvimento econômico da Nação.
Com efeito, só há efetivo exercício das prerrogativas de cidadão por aqueles que são conscienciosos de suas possibilidades, direitos e deveres como tal, notadamente face um Estado frequentemente negligente em respeitá-los.
Paralelamente, a educação, universal, livre e (quando possível) gratuita, também se mostra indissociável dos objetivos de uma economia que pretende ser (e de há muito se promete) competitiva, ao mesmo tempo que sustentável.
O segundo ponto é genuinamente importante, porque não se pode enfrentar o direito à educação como prestação positiva pura e simples – embora evidentemente o seja –, mas também como autêntico “investimento” a possibilitar o aprimoramento profissional da população brasileira rumo à mercados e produções mais complexos e lucrativos no seio de uma economia mundial cada vez mais tecnologicamente avançada e célere.
Como não poderia ser diferente no eterno “País do futuro”, convive-se no contexto brasileiro com dificuldades (políticas, técnicas e orçamentárias) com a própria qualidade do ensino, bem como com o cumprimento da primeira meta necessária para efetivação de tão básico direito, isto é, a universalização do acesso à educação e a erradicação do analfabetismo – objetivos essenciais sublinhados pela Conferência de Jomtien de 1990 e pelos Planos Nacionais de Educação desde então editados.
A recente pandemia de Covid-19 só fez ressaltar outro dos grandes “gargalos” que o direito à educação também tem por missão colmatar: o investimento e qualidade em pesquisa. Trata-se, é óbvio, de problema complexo, mas sua solução também exige oportunizar que os estudantes de hoje cheguem ao ensino superior e se tornem os pesquisadores e operadores de amanhã.
Isto é particularmente relevante na graduação em áreas da saúde, sobretudo nos cursos de Medicina que, no caso das universidades privadas, apresentam custos e mensalidades impraticáveis para quase a totalidade da população brasileira.
Entra aí um importante instrumento para permitir o acesso ao ensino superior: o financiamento com recursos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), nos termos da Lei nº 10.260/2001. Trata-se de sabido instrumento de efetivação do desenvolvimento educacional que conjuga, de um lado, a atenção a estudantes carentes e, do outro, as inerentes limitações orçamentário-financeiras do Estado, sobretudo porque se trata de financiamento que deverá ser posteriormente saldado por cada estudante aprovado nos critérios de seleção.
O busílis é que tão relevante programa tem encontrado recentemente indevidas limitações administrativas que, a pretexto de uma suposta insuficiência orçamentária da Administração, acabam em verdade por criar obstáculos que não se coadunam com sua razão de ser, e que também violam todas as diversas posições que caracterizam a fundamentalidade do direito à educação.
Destaque-se entre tais restrições – vênia dada, inconstitucionais – as introduzidas pelas Portarias nº. 209/2018 e nº 38/2021, do Ministério da Educação, que condicionam a concessão de recursos via FIES à obtenção de nota de corte baseada na média aritmética das notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Sublinhe-se: a exigência administrativa impõe que não apenas o estudante seja aprovado no Enem, mas que, além da aprovação, alcance uma média mínima que, em verdade, presta-se unicamente a afunilar, ilegalmente, o acesso ao programa de financiamento.
O vício das restrições é dúplice e consequente: na medida em que não se colhem das condições estabelecidas pela Lei nº. 10.260/2001 a exigência de que o estudante obtenha média mínima no Enem– tampouco, aliás, que se submeta ao Exame (valendo, pois, também as provas de vestibular em geral) –, os atos normativos citados afrontam o princípio da legalidade por inovar onde a lei posta de regência não autoriza.
Embora se recomende certa sensibilidade às contingências de um Estado que, apesar da grande arrecadação, mostra-se reiteradamente incapaz de cumprir todas as missões sociais que assumiu, também é certo que indevidas limitações ao financiamento estudantil podem se revelar, a médio e longo prazo, muito mais prejudiciais do ponto de vista social, profissional e científico do que os ganhos econômicos que daí podem em tese se sobressair.
Entre as opções dispostas ao administrador, não é racional que se escolha a que volte a lhe assombrar amanhã. Para abusar do adágio popular, não há como cavar um buraco a pretexto de se tapar outro.
*Américo Ribeiro Magro é mestre em Direito. Especialista em Interesses Difusos e Coletivos. Especialista em Direito Eleitoral. Advogado e consultor em Direito Digital e Proteção de Dados.
*Cícero Goulart Assis é conselheiro seccional da OAB-GO. Especialista em Direito Cibernético, do Consumidor, Constitucional, Processual Civil e de Família e Sucessões.