Arbitragem no contexto do protocolo familiar e a sua importância atual para as empresas familiares

*Rayenne Cristina Vieira e Silva

Assunto de especial importância no direito empresarial atual é o uso do método de procedimento arbitral para a melhor resolução de situações conflituosas entre membros de uma família que procuram manter uma empresa familiar em atividade.

“A Lei de Arbitragem brasileira privilegiou, em grau máximo, se comparada a outras legislações arbitrais pelo mundo, a flexibilidade do procedimento arbitral, o que se revela bastante positivo. O caput do art. 21 da Lei nº 9.307/1996 traz norma fundamental nesse sentido, dispondo que ‘a arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento’. A Lei estabelece, portanto, um poder normativo das partes em fixar as regras do procedimento arbitral.” (Teoria Geral da Arbitragem, p. 57, Fichtner, José Antônio e outros. Rio de Janeiro: Forense, 2019).

Nesse sentido, as partes podem decidir sobre prazos para si próprias e para a atuação técnica-procedimental dos árbitros, formas de proceder nas audiências (em torno de como será a instrução), formas de auditoria ou comprovações técnicas de certos fatos relevantes e/ou específicos, etc. O consenso das partes é primordial na decisão dessas questões e naturalmente que existe uma limitação à própria regulamentação do procedimento pelas partes em decorrência da interpretação lógica do princípio do devido processo legal, não se podendo, por exemplo, agredir os mais altos e significativos mandamentos da lógica do contraditório e da defesa, ou mesmo da limitação do termos da decisão final aos pedidos das partes.

Em face da dinâmica oferecida pela legislação de base arbitral, e tendo em vista a atual complexidade dos negócios em empresas de origem familiar, o “protocolo familiar” com cláusula compromissória (cláusula que institui que o regime de conflitos e eventuais interpretações deverão ser resolvidas por um ou mais árbitros, em instituição arbitral própria ou não) bem definida – a denominada “cláusula cheia” – é um documento particular ou público de notável importância para se evitar conflitos em empresas familiares antigas ou já consolidadas no mercado, as quais possuem fundadores já em idade avançada ou mesmo em notáveis dificuldades de operar o negócio segundo as exigências mercadológicas.

Sua formulação pode conter uma série de explicações básicas sobre o negócio da família, história, natureza e características relevantes, além de regras básicas ou até complexas de perspectivas de continuidade do mesmo negócio, formas de comportamento dos membros da família, instrumentação de estudos e hierarquia aplicável, sujeição de membros da família a regras rígidas de alocação de recursos e assunção de responsabilidades administrativas diretas e indiretas, etc.

Segundo Paolla Ouriques, “o protocolo familiar, age, essencialmente, sobre os pilares da família e propriedade, reforçando a necessidade de uma governança familiar e jurídica, aliada à corporativa, esta última aplicada mais diretamente à gestão da sociedade. Portanto, regula-se a propriedade quando se estabelecem diretrizes e formas de participação no capital social, bem como meios de se desvencilhar dessa relação societária, limitando-se a livre alienação e circulação de participações societárias, por exemplo, eis que podem sempre ficar na mão de familiares, caso essa seja a opção eleita pelos seus membros, isto é, controle da família”. (Legalidade, eficácia e implicações societárias do protocolo familiar. p. 76. São Paulo: Almedina, 2018)

Em se tratando da interpretação técnico-jurídica do protocolo familiar por meio de procedimento arbitral, defendemos que a decisão da controvérsia submetida melhor seria se fosse sob a égide dos princípios gerais do direito (arbitragem com julgamento segundo regras de equidade, o que é permitido pela lei de arbitragem no art. 2º, § 2º), uma vez que esses protocolos apresentam, em regra, grandes explicações e contextualizações preambulares, as quais discriminam e instituem um verdadeiro regime de obrigações éticas e comportamentais e serem seguidas pelos signatários – membros da família – no decorrer do tempo em que estivem sujeitos às regras e fundamentos do próprio documento protocolar obrigacional.

Nessa esteira, inclusive, afirmamos que a maioria dos conflitos existentes sobre o contexto do protocolo familiar são de origem comportamental em relação aos fundamentos que levaram à origem do próprio documento, bem como suas argumentações iniciais. Muitas vezes os membros da entidade familiar envolvida não entendem certas lógicas que foram submetidas ao contexto maior, que é o de manter a função social da empresa e possibilitar a continuidade do negócio de forma organizada, por exemplo.

Segundo o experiente advogado Franco de Velasco, mestre em direito econômico, presidente da comissão de direito empresarial da OAB-GO, “a relevância do protocolo familiar no cenário atual é significativa, uma vez que esse documento gera um verdadeiro sistema de segurança, harmonia e estabilidade nos membros mais novos das famílias que possuem interesse na continuidade e propagação do negócio que foi desenvolvido ao longo de décadas pelos fundadores de unidades empresariais que se destacam atualmente”.

Velasco também releva a importância de se descrever um documento protocolar familiar com a estrita concordância e atenção dos membros fundadores de empresas familiares, sem deixar de oportunizar aos demais familiares próximos (“já participantes no seu dia a dia”) ao negócio possibilidades reais de gestão, governança efetiva e adequação de interesses relevantes, além de exigir comportamentos éticos e atenciosos às adequações necessárias (“exigidas pelo ambiente de mercado específico da empresa familiar”) e colocar, se possível, a necessidade de investimentos futuros (“tendo em vista que os investimentos projetados poderão incrementar ainda mais os negócios”).

Diante da falta de especialidade dos membros do Poder Judiciário brasileiro para lidar com questões empresariais complexas e diante da perspectiva de demora expressiva do processo civil em casos de discussões familiares envolvendo empresas, sem falar de outras tantas problemáticas evidentemente conhecidas envolvendo a estrutura judiciária nacional, é de especial importância que as interpretações sobre o protocolo familiar, bem como os eventuais conflitos decorrentes da operacionalização das regras descritas no documento sejam resolvidas pela via arbitral, principalmente por meio da utilização da equidade e dos princípios gerais do direito, levando-se sempre em conta os fatores descritos no preâmbulo, ou seja, na introdução descritiva do “protocolo”.

Dessa forma, poderá o árbitro ou mesmo “os árbitros” – por meio de atuação via tribunal arbitral, em conformidade com a legislação de regência arbitral – atuar com uma dinâmica séria e flexível, procurando sempre se especializar na matéria apresentada pelas partes, de forma a se aprofundar nos problemas apresentados e resolvê-los de forma justa, rápida, imparcial; superando as expectativas das partes, e, antes de tudo, encontrando por meio da experiência e por meio da ativa atenção aos interesses contidos no protocolo familiar, a melhor forma de se dar continuidade aos negócios familiares e aos interesses relevantes colocados pelos fundadores, preservando não só a identidade do negócios, mas também a sua incolumidade financeira e operacional.

*Rayenne Cristina Vieira e Silva é advogada, árbitra, secretária geral da comissão especial de arbitragem da OAB-GO, coordenadora do núcleo de arbitragem do IEAD, instrutora do INBAN, professora e palestrante na área de teoria geral da arbitragem, instrutora em matéria de negociação, especialista em direito imobiliário, negócios e operações).