Aplicação do princípio da cooperação nos contratos de locação comercial face à questão do coronavírus

*Rayenne Cristina Vieira e Silva

O contrato pode ser definido como uma espécie de negócio jurídico que se aperfeiçoa mediante a declaração de vontade de, pelo menos, duas partes. Trata-se, portanto, de um ato bilateral ou plurilateral que se perfaz com a manifestação de vontade das partes.

A nomenclatura “negócio jurídico”, adotada pelo Código Civil de 2002, é coincidente com a autonomia privada, consistente na regulamentação dos interesses privados. Assim, cumprindo o comando constitucional, está pautado em três aspectos fundamentais: o da eticidade, o da socialidade e o da operabilidade.

Atualmente não mais se permite que um contrato celebrado de forma contrária aos ideais de justiça seja convalidado. É o que se denomina hodiernamente “função social do contrato”, previsto expressamente no Código Civil (art. 421). Função social do contrato e justiça comutativa estão relacionados diretamente, pois se há concepção social, com o afastamento da relação centrada em bases individuais, existe sempre a ideia de comutatividade. Se, ainda, associarmos esses conceitos ao da boa-fé, constataremos que função social nada mais é do que uma relação entre os contratantes pautada na boa-fé objetiva, somada a uma característica básica que deve nortear qualquer pacto: o equilíbrio nas prestações.

“O direito não simplesmente enuncia o que os cidadãos particulares devem ou não devem fazer. Além disso, o direito não aconselha meramente os juízes e outras autoridades sobre as decisões que devem tomar; determina que eles tem um dever de reconhecer e fazer vigorar certos padrões. Pode ser que, em alguns casos, o juiz não tenha o dever de decidir de um modo ou de outro; nesse tipo de caso, devemos nos dar por satisfeitos sobre o que ele deve fazer (…). Contudo, para a teoria jurídica é um problema muito difícil explicar por que os juízes tem tais deveres (…). Os deveres existem quando existem as regras sociais que estabelecem tais deveres. Essas regras sociais existem se as condições para as práticas de tais regras estão satisfeitas. Tais condições para a prática estão satisfeitas quando os membros de uma comunidade comportam-se de determinada maneira; esse comportamento constitui uma regra social e impõe um dever (…). A existência de uma regra social é, portanto, a existência do dever, é simplesmente uma questão factual”. (Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a Sério, p. 78. São Paulo: Martins Fontes 2002).

“Quando falamos nesse dever estatal de atuar diretamente para evitar danos, falamos de forma ampla, nos referindo tanto de questões atinentes à proteção da pecuária, por exemplo, como nos casos de contenção de epidemias de febre aftosa ou vaca louca, como nas hipóteses de proteção à saúde humana, podendo se citar o combate ao  H1N1, dengue e, mais recentemente, zica (…) [[coronavírus]]. De maneira clássica, tem-se que a responsabilidade civil extracontratual do Estado, ou seja, o dever de o Estado indenizar em caso de prejuízo de terceiros, é objetiva (…). Trata-se, portanto, de esfera de responsabilidade bastante ampla (…). Trazendo para nosso campo de discussão, acima proposto, percebe-se que, a princípio, a existência de um agente biológico se aproximaria da força maior” (Muniz, Bruno Barchi. O Estado pode ser responsabilizado por epidemias? Em: ibmadvogados.jusbrasil.com.br. Acesso em 17/03/2020).

Uma crescente preocupação, diante do atual contexto em que vivemos, refere-se aos contratos comerciais de locação, em especial pela determinação contida em decretos baixados em todo país determinando a suspensão temporária das atividades do comércio, visando evitar a proliferação do vírus (“coronavírus”). No Estado de Goiás, foram exarados o Decreto n. 9.633 de 13/03/2020 e o Decreto n. 9.637 de 17/03/2020, complementar ao primeiro, ordenando expressamente a suspensão por 15 dias de “todos os eventos públicos e privados de quaisquer naturezas; visitação a presídios e a centro de detenção para menores; visitação a pacientes internados com diagnóstico de coronavírus” – art. 2º, do Decreto n. 9.633/2020; além de (por sua vez, o Decreto n. 9.637/2020 determinou), com intuito de complementar o ato normativo anterior, acrescendo-lhe as seguintes medidas suspensivas por 15 dias (para incluir no artigo 2º do Decreto n. 9.633/2020): “todas as atividades em feiras, inclusive feiras livres; todas as atividades em shopping centers e nos estabelecimentos situados em galerias ou polos comerciais de rua atrativos de compras; todas as atividades em cinemas, clubes, academias, bares, restaurantes, boates, teatros, casas de espetáculos e clínicas de estética; atividades de saúde bucal/odontológica, pública e privada, exceto aquelas relacionadas a atendimento de urgências e emergências”.

Diante do cenário construído pelo fato extraordinário (aquele que promove dificuldade excessiva – arts. 317 e 478 do Código Civil) da forte e evidente disseminação do “coronavírus”, a discussão entre lojistas e empreendedores de shopping centers e estabelecimentos correlatos sobre o equilíbrio econômico do contrato de locação (que acompanha outras obrigações específicas), que já havia se iniciado no final do ano de 2019 – em razão do fraco período de vendas na época do natal –, agravou-se ainda mais. Nessa esteira, surgiram várias indagações quanto a possibilidade de negociações referentes aos contratos celebrados no tocante à obrigações das partes durante o período denominado de “quarentena” (suspensão de atividades comerciais específicas, de forma direta), em razão da disseminação e consequente perigo de contágio do vírus em seres humanos.

No Código Civil podem ser encontradas algumas regras quanto ao inadimplemento e rescisão contratual, devendo ser privilegiada a livre negociação caso a caso, visando sempre a manutenção da função social do contrato (art. 413, do Código Civil) e do princípio do equilíbrio contratual, principalmente em termos de “equilíbrio econômico” razoável e viável. A rescisão contratual deve ser a última medida a ser adotada em virtude do respeito anterior, sempre primário, ao princípio da cooperação entre os pactuantes.

“O dever de cooperação ou de colaboração estabelece uma “humanização” das relações contratuais e conduz os contratantes ao diálogo e à assistência mútua. Ele evoca menos a ideia de dominação e de conflito de interesses que aquela noção, mais refinada e complexa, de comunidade de interesses”. (Contratos Mercantis – 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. Coleção de tratado de direito empresarial; v. 4 / coordenação Modesto Carvalhosa).

Nesse ponto, o dever de cooperação impõe que os contratantes levem em consideração os interesses da outra parte e respeitem suas expectativas legítimas. Nada há de romantismo jurídico no princípio da cooperação, mas sim um meio coercitivo capaz de induzir, pela ameaça de sanção, o agir cooperativo. A exigência de cooperação e solidariedade entre os contratantes não é indiferente a considerações de desempenho e eficiência.

Como parâmetro de precedente judicial, por exemplo, tem-se o entendimento expressado no Recurso Especial nº 860277(STJ), onde se adotou o posicionamento de se aplicar a teoria da imprevisão de forma mais restritiva, porém, de forma razoável e real, por ocorrência de fato extraordinário, entendido este como um acontecimento que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação, hipótese que se amolda à problemática geral do “coronavírus”.

Assim, um caminho prudente a ser seguido nos casos de locação de imóvel comercial seria, por exemplo, a apresentação/protocolo de ação judicial declaratória ou revisional no sentido de pleitear, com base nos princípios da cooperação e da função social do contrato, o reequilíbrio econômico-financeiro do mesmo, por período determinado, a fim de se afastar multas e outras penalidades decorrentes de eventual mora ou, mesmo, a diminuição – em termos financeiros – de certas obrigações contratuais diretas, dentro de um regime de razoabilidade e proporcionalidade.

Entendemos que seria possível, inclusive, diante da situação socioeconômica séria que se apresenta, a formulação de pedido judicial na forma de tutela provisória de urgência de natureza antecipada (§ 3º do art. 300 do CPC), para que o locatário comercial seja protegido em seus interesses mais relevantes.

Rayenne Cristina Vieira e Silva é  advogada, árbitra, secretária geral da comissão especial de arbitragem da OAB-GO, coordenadora do núcleo de arbitragem do IEAD, instrutora do INBAN, professora e palestrante na área de teoria geral da arbitragem, instrutora em matéria de negociação, especialista em direito imobiliário, negócios e operações.