Abuso de autoridade: um olhar crítico sobre o texto dos vetos não acolhidos pelo Congresso Nacional

*Sérgio Ferreira Wanderley

Nos últimos dias, tem-se visto um grande alarido quanto à derrubada dos vetos apostos pelo Presidente da República ao apreciar, para sanção, o autógrafo de lei de abuso de autoridade. A questão está sendo discutida com “sangue nos olhos”, irracionalmente.

Um olhar mais acurado, mais isento, nos encaminha para outra compreensão, absolutamente diversa da que está tendo livre curso na imprensa e nas redes sociais. Foram 18 os vetos não acolhidos pelo Poder Legislativo no uso de sua prerrogativa constitucional de apreciar e decidir sobre vetos apostos pelo Chefe do Poder Executivo.

Vejamos um a um os 18 vetos rejeitados, a partir do texto legal restabelecido.

Art. 3º Os crimes previstos nesta lei são de ação penal
pública incondicionada, admitindo ação penal privada
subsidiária da pública nos termos do Código de Processo
Penal.
§ 1º Será admitida ação privada se a ação penal pública
não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério
Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia
substitutiva, intervir em todos os termos do processo,
fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo
tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a
ação como parte principal.
§ 2º A ação privada subsidiária será exercida no prazo de
6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo
para oferecimento da denúncia.

De rigor a ressalva de ser admitida a ação penal privada subsidiária da pública é, até mesmo, desnecessária, pois a ação penal privada subsidiária da pública é garantia fundamental de todos contida no inciso LIX do artigo 5º da constituição federal.

LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação
pública, se esta não for intentada no prazo legal;

A disciplina processual contida nos §§ 1º e 2º do artigo 3º é absolutamente condizente com a disciplina veiculada no Código de Processo Penal. Vejam-se as disposições dos artigos 29 e 38, CPP.

Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação
pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo
ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e
oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os
termos do processo, fornecer elementos de prova,
interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência
do querelante, retomar a ação como parte principal.

Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu
representante legal, decairá no direito de queixa ou de
representação, se não o exercer dentro do prazo de seis
meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor
do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar
o prazo para o oferecimento da denúncia.

Nenhuma inovação se fez. Resistir à possibilidade de intentar-se a ação penal privada substitutiva da pública é pretender impedir o exercício de um direito fundamental inerente ao Estado Democrático de Direito e à dignidade da pessoa humana. Avancemos.

Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade
judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar
diversa ou de conceder liberdade provisória, quando
manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando
manifestamente cabível.

A prisão ilegal é repudiada pela Constituição Federal e por todos os tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário e, por óbvio, a decretação de prisão em manifesta desconformidade com as hipóteses legais é caso clássico de abuso de autoridade.

Com o advento da Lei 12.403/11 a liberdade, nos dizeres de Nucci, constitui-se como regra, a prisão como exceção, o que representou um enorme avanço no sentido de dar-se concretude e efetividade a princípios caros ao Estado Democrático de Direito, com especial relevo à dignidade da pessoa humana; a prisão processual passou a ser entendida como a extrema ratio da ultima ratio.

Essa questão é da tradição constitucional brasileira, estando presente, por exemplo, nas disposições do § 8 do artigo 179 da Constituição do Império do Brasil, de 1824.

§ 8º) Ninguém poderá ser preso sem culpa formada,
exceto nos casos declarados na lei; e nestes dentro de vinte
e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em
cidades, vilas e outras povoações próximas aos lugares da
residência do juiz; e nos lugares remotos dentro de um
prazo razoável, que a lei marcará, atenta à dimensão do
território, o Juiz, por uma nota, por ele assinada, fará
constar ao réu o motivo da prisão, os nomes do seu
acusador, e os das testemunhas, havendo-as.

Também é da nossa tradição jurídica a vedação à permanência do encarceramento em casos em que cabível a fiança ou nos delitos de menor potencial ofensivo. A este respeito é interessante a disposição do § 9º do artigo 179 da Constituição de 1824.

§ 9º) Ainda com culpa formada, ninguém será conduzido
à prisão, ou nela conservado estando já preso, se prestar
fiança idônea, nos casos em que a lei a admite; e em geral
nos crimes que não tiverem maior pena, do que as de seis
meses de prisão, ou desterro para fora da comarca,
poderá o réu livrar-se solto.

Nem mesmo a punição à autoridade judicial que decreta a prisão ilegal é novidade, posto que expressamente prevista no § 10 do artig 179 da Constituição Imperial.

§ 10) à exceção de flagrante delito, a prisão não pode ser
executada senão por ordem escrita da autoridade
legítima. Se esta for arbitrária, o juiz, que a deu, e quem
a tiver requerido serão punidos com as penas que a lei
determinar.

O que fica disposto acerca da prisão antes da culpa
formada não compreende as ordenanças militares,
estabelecidas como necessárias à disciplina; e
recrutamento do Exército; nem os casos que não são
puramente criminais, e em que a lei determina todavia a
prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos mandatos
da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro de
determinado prazo.

Essas normas da Constituição de 1824 se fazem presentes em nossa constituição atual, a Constituição Cidadã no inspirado dizer de Ulysses Guimarães, em vários dos incisos de seu artigo 5º.

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou
por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão
militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se
encontre serão comunicados imediatamente ao juiz
competente e à família do preso ou à pessoa por ele
indicada;

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido,
quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem
fiança;

LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário
infiel;

O repúdio à prisão arbitrária se vê estampado, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Artigo 9º

Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou
exilado.

Nenhum espanto nos pode causar a disposição do art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade restabelecida por decisão soberana do  Congresso Nacional, nem mesmo quanto às disposições relativas ao habeas corpus. O relaxamento imediato da prisão ilegal é obrigação constitucional dos magistrados.

LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
autoridade judiciária;

LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que
alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência
ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade
ou abuso de poder;

Por seu turno o restabelecimento do texto integral artigo 13 e seus incisos, que haviam sido vetados, é absolutamente consentâneo com os princípios que nos regem e, na verdade, trata-se de disposição absolutamente essencial para que se preserve o direito fundamental à não autoincriminação.

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante
violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de
resistência, a:

I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à
curiosidade pública;

II – submeter-se a situação vexatória ou a
constrangimento não autorizado em lei;

III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem
prejuízo da pena cominada à violência.

A espetacularização, hoje costumeira, de prisões tornou-se regra, explora-se midiaticamente a imagem, o nome dos presos, exibidos à sanha, ao rancor popular. Isto tem sido causa de gravíssimas injustiças e prejuízos morais, materiais, sociais e familiares de inúmeros inocentes. Um gravíssimo constrangimento, uma inominável situação vexatória.

Também no sentido da vedação à espetacularização midiática é que se deve compreender a regra contida no artigo 38 da Lei de Abuso de Autoridade, cujo inteiro teor foi restaurado pela decisão congressual.

Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por
meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de
culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a
acusação:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece
que no concerto das Nações civilizadas ninguém sofrerá ataques à sua honra
e reputação, fato que aliado à presunção de não culpabilidade, não poderão
se expostos à arbitrariedade da exploração midiática de prisões e dos
próprios presos.

Art. 11º
1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso presume-se
inocente até que sua culpabilidade fique legalmente
provada no decurso de um processo público em que todas
as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

Art. 12º
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida
privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua
correspondência, nem ataques à sua honra e reputação.
Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem
direito a proteção da lei.

Não se diga que estas disposições da Declaração Universal dos Direitos Humanos podem ser vulneradas, ou ignoradas, por nossa legislação doméstica ou pela jurisdição doméstica, pois é certo que esta possibilidade inexiste. A constituição de 1988 é absolutamente clara quanto à não exclusão de direitos e garantias vertidos em tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte. Leia-se o § 2º do artigo 5º da Carta de 1988.

§ 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.

Importantíssimo que se deite o olhar sobre a regra do inciso III do artigo 13 restabelecida pela deliberação do Congresso Nacional ao rejeitar o veto presidencial sobre ela aposto, regra que pune o constrangimento ao preso ou detento para que produza provas contra si ou contra terceiros. Conveniente recordarmo-nos da tipificação dada ao crime  de tortura pelo artigo 1ª, inciso I, alínea ‘a’ e §§ 1º e 4º, inciso I, da Lei nº 9.455/97.

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou
grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa;

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa
ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou
mental, por intermédio da prática de ato não previsto em
lei ou não resultante de medida legal.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I – se o crime é cometido por agente público;

O crime de abuso de autoridade previsto no artigo 13, III, da Lei 13.869/2019, na redação restabelecida por decisão soberana do Congresso Nacional, aclara e pune a tortura – física ou psicológica – praticada por agentes do Estado como forma e meio de obtenção de provas
de atos ilícitos, fato, infelizmente, de ocorrência e curso absolutamente generalizado em nosso país.

Sigamos adiante. Outra norma que vem encontrando grande repercussão midiática é a contida no artigo 16 da Lei de Abuso de Autoridade, cujo teor foi restabelecido com a derrubada do veto presidencial.

Art. 16. Deixar de identificar-se ou identificar-se
falsamente ao preso por ocasião de sua captura ou
quando deva fazê-lo durante sua detenção ou prisão:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, como
responsável por interrogatório em sede de procedimento
investigatório de infração penal, deixa de identificar-se ao
preso ou atribui a si mesmo falsa identidade, cargo ou
função.

É impressionante a resistência oposta pelos órgãos estatais de investigação e de persecução à identificação de seus agentes aos encarcerados, olvidando que esta identificação é direito fundamental do preso, é garantia a ele constitucionalmente assegurada pelas disposições do inciso LXIV do artigo 5º da Lex Legum.

LXIV – o preso tem direito à identificação dos
responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório
policial;

A criminalização da conduta de negar-se o agente estatal a identificar-se ao preso nada mais intenciona que compelir agentes públicos a dar efetivo cumprimento a um direito constitucionalmente assegurado. Isto não pode causar espécie e não afeta a atuação dos órgãos de segurança. Ao preso deve ser garantido o direito de saber quem o prendeu, quem o mandou prender e a razão pela qual foi preso.

Outro ponto que vem sendo fortemente explorado é o relativo ao exercício do direito de defesa pelos acusados, é a pretensão de criminalização da advocacia. Hoje os advogados com atuação na área criminal vêm sofrendo intensa perseguição midiática e mesmo na seara processual, pois nos acusam de atrapalhar as investigações. Neste contexto é que se pode compreender a resistência dos agentes públicos que atuam nas diversas etapas da persecução penal: órgãos da segurança pública, membros do Ministério Público e do Judiciário, à atuação profissional de advogados na defesa de acusados, de encarcerados.

É intrínseco ao exercício da defesa, na amplitude assegurada pela constituição, que não se possam levantar obstáculos ao exercício profissional da advocacia, último bastião de defesa das liberdades individuais frente ao gigantismo pantagruélico do Estado, e estes obstáculos nos são postos e impostos a todo momento, a todo tempo. Por isto, e muito mais, não é de espantar ou causar espécie, a reação desabrida da mídia e de agentes do Estado em face das disposições do artigo 20 da Lei de Abuso de Autoridade na redação restabelecida pela decisão soberana do Poder Legislativo.

Art. 20. Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e
reservada do preso com seu advogado:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre a mesma pena quem impede o
preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se
pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor,
por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de
sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a
audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de
audiência realizada por videoconferência.

Recordo-me que a tradição constitucional brasileira é no sentido da garantia, em sua plenitude, do direito à ampla defesa e ao contraditório, garantia que se fazia presente, por exemplo, no § 16 do artigo 72 da Constituição de 1.891.

§ 16 – Aos acusados se assegurará na lei a mais plena
defesa, com todos os recursos e meios essenciais a ela,
desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e
assinada pela autoridade competente com os nomes do
acusador e das testemunhas.

O mais essencial dos meios inerentes à ampla defesa é a entrevista pessoal do acusado, do preso, com seu advogado. Sem ela não há defesa. O impedimento, a inviabilização deste contato pessoal, direto e sigiloso do acusado com seu advogado deve ser sancionado, criminalmente sancionado, pois, de outro modo, tornar-se-á letra morta e as promessas
constitucionais serão vãs, irreais, embora a própria Carta as afirme, no § 1º de seu artigo 5º, de aplicação imediata e incondicionada.

§ 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata.

Neste ponto é mister apreciemos, per saltum, a norma contida no artigo 32 da Lei de Abuso de Autoridade que foi restabelecida, em sua inteireza, pelo Congresso Nacional ao ser rejeitado o veto presidencial sobre ela aposto, por tratar-se de norma que objetiva assegurar o direito à ampla defesa e à prática do contraditório, tema sobre o qual estamos a discorrer.

Art. 32. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado
acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo
circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro
procedimento investigatório de infração penal, civil ou
administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias,
ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em
curso, ou que indiquem a realização de diligências
futuras, cujo sigilo seja imprescindível:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa
Sempre nos causou espécie o desassombro com que os órgãos
de persecução, criminal, administrativa, etc., negam-se a permitir o acesso
da defesa aos autos e documentos nele encartados. É recorrente a busca ao
Judiciário para que este direito essencial seja respeitado e o preconceito que
em nosso desfavor medra naqueles meios seja superado.

O advogado atrapalha as investigações por exigir o efetivo e real cumprimento das garantias constitucionais e legais dos investigados e que as leis que regulam a atividade estatal na persecução sejam rigorosamente cumpridas esta é a interpretação absurda dos agentes de Estado.

Urgia a criminalização desta conduta que nos impede de exercer prerrogativas que não são nossas, não são dos advogados, mas sim de nossos constituintes, dos acusados em geral. Não obstamos a persecução, nos limitamos a exigir que a força se submeta ao direito. Ihering de muito nos alerta:

O direito é a sã política da força – não a política míope do
momento, do interesse momentâneo, mas a política de
ampla visão, que vislumbra o futuro e mede os extremos.

E conclui:

Apenas onde impera o direito é que medra o bem-estar
nacional, florescem o comércio e a indústria e a força
espiritual e moral inerente ao povo se desdobram em todo o
seu vigor.

Cercear, por qualquer modo, o mais amplo e pleno exercício da garantia constitucional à ampla defesa e ao contraditório é negar todo o evolver civilizatório que nos permitiu alcançar e concretizar os avanços sociais de que hoje dispomos. Contra quaisquer pretensões absolutistas, que neguem essas garantias, deve o legislador fazer-se presente, como o fez, ao criminalizar, como abuso de autoridade, a violação a este que é um dos mais relevantes dos direitos humanos fundamentais: o direito do indivíduo defender-se frente a poderosa e gigantesca estrutura estatal de persecução.

Continuemos.

A disciplina do artigo 30 da Lei do Abuso de Autoridade é de uma essencialidade ímpar e comunga com aquilo que nós publicistas vimos discutindo em Congressos, artigos e debates: O medo como fator de inibição da prática de atos administrativos, de atos decisórios.

Na ambiência da persecução aos atos de improbidade administrativa, tipificados na Lei 8.429/92, o que se vê, de forma usual e constante, são inquéritos civis públicos e ações civis públicas iniciadas contra pessoas sabidamente inocentes. É a subjugação dos Poderes Públicos às vontades de promotores e procuradores de justiça que se pretendem
substitutos dos agentes da Administração Pública. Fato que ocorre, com intensidade ímpar, na seara ambiental onde os agentes da Administração se veem sob permanente ameaça de responsabilização pessoal pelos atos praticados, por licenças ambientais mesmo que legalmente deferidas.

A ameaça de instauração de inquéritos civis públicos e de ações civis públicas com a pretensão de responsabilidade in actu exercitu, responsabilidade objetiva decorrente do só exercício do cargo público, é uma constante que tem provocado o que se convencionou denominar apagão das canetas. Hoje por levantamentos realizados por publicitas de escol sabemos que aproximadamente 80% das condenações por improbidade administrativa
situam-se na ambiência da violação a princípios da Administração.

Tome-se como exemplo o desprestígio e a não-aplicação das disposições do § 2º do artigo 80 do Decreto-lei 200/67, norma que se encontra em pleno vigor.

§ 2º O ordenador de despesa, salvo conivência, não é
responsável por prejuízos causados à Fazenda Nacional
decorrentes de atos praticados por agente subordinado
que exorbitar das ordens recebidas.

É impressionante mas corre na Justiça goiana uma ação civil pública em que o agente da administração é perseguido por ter dado integral cumprimento a uma ordem judicial liminar deferida em mandado de segurança, e o é ao argumento de que o particular que contrata com a Administração ao buscar a defesa de seus direitos em sede de mandado de
segurança estaria se utilizando de um ardil, de um artifício.

Como este são inúmeros os casos que nós publicistas enfrentamos em nosso dia-a-dia. Clara a necessidade de estabelecer-se tipificação a esta conduta de óbvio abuso de autoridade, que tanto mal tem  feito para nosso país travando investimentos, postergando decisões e políticas públicas.

Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil
ou administrativa sem justa causa fundamentada ou
contra quem sabe inocente:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Por último resta-nos deitar o olhar sobre as disposições do
artigo 43 da Lei de Abuso de Autoridade, que diz respeito à criminalização
da violação de prerrogativas de advogado.

Art. 43. A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a
vigorar acrescida do seguinte art. 7º-B:

“Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa
de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput
do art. 7º desta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”

De plano deve ser esclarecido que a Lei 8.906/94 veicula o Estatuto da Advocacia, norma que, dentre outras questões, disciplina nossa atuação profissional. O artigo 7º do Estatuto da Advocacia veicula nos incisos II, III, IV e V prerrogativas que estão umbilicalmente ligadas às matérias expressamente tratadas na Lei de Abuso de Autoridade. Veja-se:

Art. 7º São direitos do advogado:

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho,
bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua
correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática,
desde que relativas ao exercício da advocacia;

III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e
reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se
acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos
civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;

IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso
em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia,
para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e,
nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da
OAB;

V – não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em
julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e
comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão
domiciliar;

Como se vê desse conjunto de prerrogativas as duas primeiras dizem respeito à proteção do direito de defesa de nossos clientes, especialmente do sigilo inerente à relação cliente-advogado, sigilo que os agentes de Estado vinculados à persecução de ilícitos criminais, civis e administrativos sonham afastar e romper, tanto que a estratégia que se mostra
hoje iniciada, e normalizada, é buscar inserir o advogado no concerto dos fatos em investigação tratando-o como um dos “alvos” a serem alcançados.

Isto se vê, claramente, na pretensão de criminalização dos honorários de advogado ao impor-se ao profissional da advocacia responsabilizar-se pela origem dos valores que lhe são pagos, numa clara pretensão de imputação de responsabilidade objetiva ao advogado e de cerceamento do direito de defesa de seus clientes.

As duas outras prerrogativas dizem respeito a garantias do advogado em caso de ser-lhe decretada a prisão em razão de seu exercício profissional, a primeira delas relativa ao momento mesmo da prisão, a segunda ao cumprimento da prisão processual em condições dignas semelhantes àquelas aplicáveis a juízes e membros do Ministério Público, concretizando-se a isonomia que, por força constitucional, deve medrar entre os operadores do direito integrantes das carreiras essenciais ao exercício da Justiça.

Nesse toar é forçoso constatar-se que diversamente do clamor midiático e dos comentários feitos por magistrados, por membros do Ministério Público e por seus órgãos de representação, quanto às disposições da Lei de Abuso de Autoridade restabelecidas, em sua inteireza, por decisão soberana do Congresso Nacional, tais disposições restabelecidas não afetam, nem impedem, o exercício pleno de quaisquer investigações, nem tocam nas
fímbrias das garantias inerentes à magistratura, em especial o livre convencimento motivado. Tudo não passa da velha e conhecida “tempestade em copo d’água” partida daqueles que controlam, mas não querem ser controlados.

Impressionante é constatar-se que os magistrados e membros do Ministério Público que bradam contra a Lei de Abuso de Autoridade demonstram não confiar neles mesmos, pois o titular da ação penal pública incondicionada é o Ministério Público e quem julgará as ações penais que digam respeito a abuso de autoridade é o Judiciário que, ao longo do tempo,
construirá jurisprudência fixando os parâmetros de compreensão e interpretação da norma penal do abuso de autoridade.

Os tópicos regulados pela novel Lei de Abuso de Autoridade estavam a exigir disciplina penal, abusos estavam sendo cometidos a mancheias, exatamente em razão da ausência absoluta de quaisquer instrumentos de controle, instrumentos que a Lei 13.869/2019 em boa hora nos outorgou. Um importantíssimo instrumento civilizatório que terá o condão de aprimorar a administração da Justiça e o convívio social.

*Sérgio Ferreira Wanderley é advogado