*Lucas Miglioli
Há um ano, o Brasil começava a sentir os primeiros impactos da pandemia da Covid-19. A velocidade de propagação da doença direcionava as atenções para a possibilidade de colapso na saúde, expondo, de forma ainda mais gritante, a precariedade do sistema público nacional.
Hoje, entretanto, outra consequência nefasta do novo coronavírus começa a vir à tona. As medidas restritivas de circulação e de atividades causam impactos severos à economia, com a determinação de fechamento de empresas estabelecimentos comerciais, escolas, academias, restaurantes, dentre outros. Com a liquidez comprometida, empresas buscaram, a todo custo, sobreviver à COVID-19 focando suas ações mitigadoras, inicialmente, nas obrigações trabalhistas, de fornecimento e tributárias. Passado o choque inicial, passaram a revisitar as obrigações assumidas antes da pandemia, cujos números têm mostrado a incompatibilidade com o atual cenário econômico.
Essa desconjuntura desequilibra a relação estabelecida entre os contratantes no ato da contratação, quando as partes conheciam (ou, ao menos, deveriam conhecer) o ambiente econômico no qual estabeleceram suas condições para o negócio. Nesse momento, a balança estava equilibrada. Entretanto, a mudança brusca e, sobretudo, imprevisível desse panorama, pende a balança para um dos lados, em detrimento do outro, impondo o reequilíbrio econômico-financeiro das condições contratadas.
Justificativas não faltam. Órgãos oficiais e imprensa têm noticiado sobre aumento significativo dos índices econômicos, de linhas de financiamento, da variação cambial, da sinistralidade com efeitos importantes no valor de seguros. Na rua, o impacto do custo de vida é visível nas prateleiras dos grandes varejistas, nas bombas de combustível, em todos os deliveries que tentam dar sustentação aos que tentam manter portas abertas.
Note, não estou me referindo a qualquer oscilação econômica, aquela corriqueira, que todo e qualquer gestor médio conhece (ou deveria conhecer). As intempéries a que me refiro são extraordinárias, capazes de alterar, significativamente, todo contexto nacional, dignas daquelas oriundas dos planos econômicos das décadas de 80 e 90.
Bem por isso, a revisão das condições contratuais nesses casos encontra amparo na lei e nos mais comezinhos princípios do Direito.
Nesse ponto, reside o maior atrito entre os interessados, simplesmente porque muitos desconhecem seus direitos diante dessa situação excepcional, de extrema gravidade, que, tendo tomado todos de surpresa, impossibilitou qualquer medida preventiva.
Em muitos casos, essa imprevisão onera, excessivamente, uma das partes da relação contratual. Tratam-se das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, pelas quais há de se buscar o equilíbrio da equivalência das prestações em razão da alteração brusca e significativa das condições existentes no momento da contratação.
A necessidade de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro, afetado pelas medidas de combate à pandemia, tem extrapolado o âmbito privado, tornando-se crucial também nas relações mantidas com o Poder Público, como autoriza nosso ordenamento jurídico, especialmente a Constituição Federal (art. 37, XXI) e a Lei de Licitações (art. 65, alínea “d”).
A princípio, o pedido é direcionado ao próprio órgão contratante, contendo as razões econômicas e jurídicas ensejadoras da adequação contratual.
É imprescindível demonstrar a modificação do cenário em que estabelecidas as condições contratuais em decorrência de “álea econômica extraordinária e extracontratual” apta a comprometer a execução do contrato, como prevê a Lei de Licitações em seu art. 65, II, alínea “d”, destacando as seguintes hipóteses: fatos imprevisíveis; fatos previsíveis, porém de consequências incalculáveis; caso fortuito; força maior; ou fato do príncipe.
Todavia, caso a negociação fracasse no âmbito administrativo, o pedido pode ser submetido ao crivo do Poder Judiciário, por meio de ação judicial.
Afinal, de uma forma ou de outra, é preciso manter o equilíbrio da relação contratual, evitando que o cenário, imprevisível e extraordinário, decorrente das medidas de combate à COVID-19 imponha prejuízo a umas das partes contratantes.
Uma coisa é certa: a situação atual demanda bom senso e seriedade para garantir não apenas o posicionamento ideal do fiel da balança, mas, sobretudo, a execução dos contratos de interesse público.
Por isso, o gestor público deve estar atendo à peculiaridade do atual panorama econômico, analisando, com a acuidade exigida pelo momento, os pedidos de readequação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos sob sua responsabilidade, a fim discernir os pedidos pautados nas premissas acolhidas pela legislação que rege a matéria daqueles meramente oportunistas.
Afinal, é preciso separar o joio do trigo, para garantir o interesse Público, sem comprometer o produtor.
*Lucas Miglioli é sócio de Miglioli e Bianchi Advogados