Humanismo, cidadania, garantismo e Direito Penal (Uma abordagem crítico-analítica em uma sociedade de capitalismo emergente)

Amadeu de Almeida Weinmann [1]

Gostaria de iniciar a minha abordagem sobre o tema, introduzindo a questão em torno do conceito de Cidadania. Isso porque, é em relação a esse conceito que os outros dois – Direito Penal e Garantismo – estão relacionados, de forma muito profunda. A cidadania é um conceito capital, principalmente se pensarmos o Estado a partir da modernidade.

Mesmo anteriormente, no mundo antigo, esse conceito já atraía a atenção dos mais variados pensadores.

É assim, em primeiro lugar, o caso da cidadania no mundo grego, que a partir do século XII a.C., com a invasão crítica e avassaladora dos dóricos, fragmentou-se o antigo espaço cultural do império micênico e, dessa onda de destruição, veio a emergir a figura política por excelência do mundo helênico, qual seja a Polis. Não deve ser entendida, apenas, como a Cidade-Estado, mas sim como um “novo” espaço político-cultural, que propiciou a emergência de uma nova figura política, um novo ser político, o cidadão.

Independente da imensa dose de exclusão desse conceito, mesmo no momento da democracia em Atenas, é inegável que a idéia de um sujeito-político participativo, com amplos direitos e deveres regulados, assaltava o pensamento da emergente filosofia que, não por acaso, chamou a atenção da tríade de ouro do pensamento grego: Sócrates [2], Platão [3], Aristóteles [4].

O cidadão, e a cidadania acabavam por se constituir no núcleo central desse novo espaço cultural que a Pólis havia criado, pois ela obrigava aos sujeitos que, a partir de um exercício prático que levava à efetiva realização da virtude, à plenitude da vida moral que, até então, estavam restritos apenas à figura limitada dos súditos. Pode-se observar que, nesse momento de ruptura com as tradições monárquicas da península balcânica, a cidadania exigia uma nova linguagem, que se libertava do predomínio dos discursos divinos e, ato contínuo, desnudava a linguagem dos deuses em discurso humano.

O surgimento da Pólis, do cidadão, e da cidadania obrigava aos mitos divinos sucumbirem ao mundo dos homens, desmistificando o pensamento até então determinado pela vontade e humor de seres que somente alguns privilegiados poderiam alcançar. Acompanhando assim, essa primeira “revolução copernicana”, e aqui peço licença para me utilizar dessa expressão, pois ela é comumente utilizada para representar uma grande transformação, a figura desse novo mundo político-social necessitou da figura de um novo espaço jurídico.

E, já que o direito é sempre resultado do tempo e do espaço, para proteger essa nova ação do sujeito em sua realidade social, isto é, a cidadania, as Pólis gregas obrigaram-se a realizar uma transformação no seu conjunto de leis, nos seus procedimentos, enfim, em seu espaço jurídico.

É comum associarmos a figura do direito ao mundo romano, já que é deles que se retira boa parte de nossas instituições, bem como de nossos brocados. Mas, se fizermos um exame aprofundado, essa é uma equivocada interpretação do processo histórico-jurídico. Se for verdade que, por um lado, do mundo romano temos uma profunda dívida no que diz respeito a muitos dos institutos jurídicos até agora ainda em vigor, por outro lado, é verdadeiro igualmente que é da Grécia que subtraímos a essência, a alma, o sopro de todo o ordenamento jurídico universal.

E tal herança só poderia resultar a partir do surgimento da Pólis, da figura do cidadão, enfim, da cidadania. Repita-se: o direito se organiza em nome dessa transformação do social, dessa emergência de uma nova ação do sujeito político, e que veio a ser denominada de cidadania.

Essa exposição pretende, também, resgatar uma dívida com a tão falada cultura grega, pois que, infelizmente, não é bem entendida, até hoje por muitos. Cumprida, portanto, essa dívida para com os helênicos, se faz necessário saltarmos muitos séculos, adentrando então no mundo moderno, já com o nascimento do Estado pós-mundo medieval.

É por todos sabido que, do medievo não é possível falarmos em Estado tal qual o conhecemos hoje. Isso porque, em boa parte do mundo Europeu ocidental, àquela figura de Estado racional e centralizado, como o do mundo romano, havia sucumbido com a crise de Roma.

Não há que se falar, portanto, em Estado, cidadão e cidadania, ao longo dos séculos V a XV, pois que a Europa Ocidental esteve sob o jugo das figuras do feudo, da servidão, do senhor feudal e da Igreja. Mas foi essa última, a Igreja Romana que, organizada por um finalismo obscurantista, de uma forma surpreendente, manteve a existência do direito e da figura jurídica.

É claro, como todos sabem, ela manteve um espaço jurídico confundido com próprio discurso religioso, marcado por ordálias e pela presença no mundo ocidental, do direito consuetudinário dos povos invasores. Mas isso parece ser um paradoxo, pois é essa mesma Igreja que, em nome de sua crença, exerce a influência definitiva para mediar a relação dos elementos culturais romanos com àqueles dos povos germânicos.

E, assim sendo, busca reorganizar e disciplinar o viver em sociedade.

E qual é o aparente paradoxo? É que, de dentro dela é que surge um novo pensamento político, encarnado, primeiro na patrística [5], e depois na escolástica [6], passando, com isso, justificar o mundo de então. Nesse exercício de construção de uma nova Europa, vê-se ela coagida a buscar, no velho direito romano, organizado este, em um conjunto composto de regras conhecido como código de Justiniano, com o qual vivenciaríamos a nova cultura jurídica.

Mas, a um tempo em que não se pode perceber a sobrevivência do velho mundo político dos gregos e dos romanos, de outro lado, não há de se negar que sobreviveu, deles, de forma sólida, o direito. E é na chamada hermenêutica jurídica, bem como na hermenêutica religiosa, que o pensamento da Igreja vai subverter-se a si própria, permitindo que, num espaço mais amplo do que o próprio monastério, surja uma concepção que será, até certo ponto, a antítese do pensamento medieval, e que foi conhecido por renascimento.

Quero observar que até aqui, venho enfrentando o problema da cidadania e do direito, ainda que de forma um tanto marginal, mas, evidentemente, sem me ater ao direito penal. Na realidade, enquanto ramo público do direito, o direito penal está envolvido em todo esse processo, submetendo-se as análises que até aqui foram desenvolvidas.

Mas, desse período, é inegável que a faceta mais evidente a caracterizar o direito penal, é a crueldade. E é, assim, porque a pena, a sanção, se caracterizava ainda como uma vingança estatal, pois que não tinha nenhuma preocupação ressocializadora. O marginal era uma figura a ser extirpada, excluída do convívio, já que, se no mundo antigo o sujeito infrator ameaçava a Pólis como um todo, no mundo medieval era um desafio à própria figura divina e aos seus seguidores.

Não será com o renascimento, nem mesmo com o mundo revolucionário francês, que essa figura de um direito penal menos vingativo há de se alterar, mas é, exatamente com a discussão em torno da cidadania, do cidadão, do homem, é que o direito penal alçará a figura principal da crítica intelectual.

O fim do antigo regime, e o nascimento daquilo que se convencionou chamar de contemporaneidade, trouxe ao estudo do direito toda uma nova reflexão. Não por acaso que, em 1804, Napoleão Bonaparte se lançava na tarefa de impor o seu código que, baseado na pessoa, na propriedade e nos contratos, definia uma práxis civil em que as nações buscaram e ainda buscam se espelhar. Mas, veja-se que, em relação ao espaço penal, o discurso jurídico ainda se mantinha bastante tacanho, e cruel até.

É César Beccaria quem lança a discussão em torno de um direito penal que visasse uma aplicação da pena mais de acordo com o sujeito. Foi com ele que, mesmo aqueles que fossem considerados agentes de delito, passaram a ter preservados os direitos humanos. Isto é, ao se tornarem reféns do Estado, esse não poderia, simplesmente, desconsiderar os direitos dos cidadãos.

Não é errado afirmar, que é esse autor quem oxigeniza o discurso teórico sobre direito penal, levando tantos outros autores a pensarem de forma humana, tanto o delito, quanto o criminoso, a vítima e, por fim, a pena.

Mas essa discussão vem miscigenada da polêmica em torno da figura da cidadania que, quase ao mesmo tempo, sofre a carga de fatores novos, tais como os do liberalismo, do republicanismo, da separação dos poderes, do positivismo e de todos aqueles direitos associados ao universo burguês.

O direito penal, dessa maneira, sofre uma revolução conceitual, que é fruto de toda essa discussão social que vê na figura dos direitos do homem e do cidadão, a base da relação dos sujeitos entre si, na sociedade, e com a figura do Estado. O século XIX é pródigo em fortalecer uma nova perspectiva do humano, bem como do social, fortalecendo-se esses, no grande movimento iniciado pela resistência a revolução industrial, na ação dos sindicatos e, sem dúvida, na emergência da crítica marxista e da sua perspectiva de uma alternativa à uma sociedade capitalista.

O direito penal não ficou incólume a esses processos e, lentamente, se viu constrangido a se modificar, buscando uma face mais branda que, de certa forma, veio a consagrar o seu grande desafio: reprimir, sancionar, mas a partir de determinados limites claros que não viessem ferir os direitos daqueles que, humanamente, viessem a romper com uma regra de comportamento social.

E é assim, desde então.

Esse rememorar histórico creio ser de muita importância e com ele encerra-se a primeira parte desta divagação retrospectiva.

Justifica-se tal estratégia, porque o tema agora a abordar não pode ser visto sem alguns desses breves dados, já que, sob o manto da importância dessa problemática, há todo um caminhar histórico que pode auxiliar-nos a desvendar as dificuldades que nele estão inseridas, e que devem ser enfrentadas para o melhor entendimento da questão. Notem que, de tempos em tempos surge uma nova esperança na tão desgastada relação do Direito com a sociedade. Principalmente sobre aquele espaço do Direito que escolhi para ser o meu território de atuação: o Direito Penal.

O direito penal não é somente o resultado de um indivíduo que, causando, ou tentando causar dano ou perigo a um bem juridicamente tutelado, tem a sua atuação tipificada e, por isso é enquadrado num tipo da lei e, em razão deste enquadramento recebe, de parte da sociedade, a devida sanção pelo seu destoante ato.

Em um país como o nosso, em uma sociedade de economia emergente, de grandes disparidades sociais, o direito penal é contraditório por excelência. Isto porque, em sua realidade, está longe de poder ser tido como uma manifestação resguardada dentro de limites democráticos, equidistantes que, no dizer de Aristóteles, se comporta como uma manifestação do “justo meio” entre os homens.

O garantismo, é agora, a palavra milagrosa, extraordinária, sobrenatural, fantástica, encantadora, fascinante e salvadora. É a nova Arca de Noé ante esse novo dilúvio! É a moda da vez. E, aqui, não se pretende dar a essa expressão “moda da vez” nenhum cunho negativo ou pejorativo. É um fato: ele é, realmente, a moda da vez.

O garantismo nasceu na Itália, a partir da necessidade de se adequar o Código Penal fascista de Mussolini, à nova Constituição democrática do pós-guerra. Pode também ser chamado de ‘a constitucionalização do Direito’. Surgiu para aplicação na área do Direito Penal e do Processo Penal, mas, sem dúvida, pode ser levado a todas as outras áreas do Direito.

Tem em Luigi Ferrajoli seu idealizador e seu maior doutrinador.  Como boa parte de todos os nossos movimentos teóricos, o garantismo também foi um produto importado, seguindo-se, assim, uma tradição das sociedades como a nossa, a buscar, incessantemente, experiências prontas e de resultados contraditórios, para a aplicação salvadora em nosso país.

É necessário, sem dúvida, refletir-se, em um primeiro momento, na dúvida em que se deve resgatar o garantismo, pois que, o seu principal nome, Luigi Ferrajolli, é herdeiro desse tempo que nos obriga a pretender um direito penal mais humano, fruto de um Estado de intervenção mínima mas, sem nos olvidarmos que vivemos numa realidade em que a banalização da violência é levada ao extremo, exigindo uma desproporcional e esmagadora resposta estatal.

Assim, necessário buscarmos o início! O início é sempre a explicitação daquela máxima de Platão, de forma alguma evidente em si mesma, segundo a qual a “origem é a mais perfeita de todas as coisas naturais e humanas”.

O pensamento ocidental, no qual foi gestado o garantismo, privilegia hoje, percepções muito mais ligadas ao fim, ao poente e ao crepúsculo, do que ao início, do que a aurora e ao amanhecer.        A cultura ocidental, onde o garantismo foi embalado e enunciado, já chegou a elaborar anteriormente várias noções sobre a consumação final de tudo, e a atravessar diversos períodos dominados por uma mesma fascinação com o ocaso. Bem assim, tais períodos mantiveram contato íntimo com o direito, mais ainda, em relação ao direito penal. Comentadores de filosofia e historiadores em geral, se identificaram com as crises, como a da ordem imperial romana e o descaso para com a sua tradição.    Os terrores apocalípticos com a proximidade do primeiro milênio (que por sinal, obrigou a uma prática jurídica de se buscar culpados). O medo imperativo, ou os períodos relacionados à Peste Negra e à Guerra dos Trinta Anos assim deve-se incluir. Tantos outros anúncios de catástrofes inevitáveis nunca acontecidos. Certos processos de deterioração e certas imagens específicas, como a do outono ou a da luz que se apaga, sempre se vincularam à percepção humana da ruína física e da mortalidade terrena.

Essa visão, infelizmente, é a marca que cerca o direito penal, que buscou e busca ser uma resposta jurisdicizada do cotidiano e do imaginário social, regulando e disciplinando tais sentimentos, a partir de uma norma sancionadora que, sem resolver tais situações, pretende somente controlar e dominar.

Mesmo antes de Montaigne, diversos moralistas já chamavam a atenção para o fato de que o “recém-nascido é suficientemente velho para morrer”.

Quer dizer: na mais confiante elaboração metafísica, e na obra de arte mais triunfal, há sempre um memento mori, um empenho implícito ou explícito para conter a ação fatal e inexorável do tempo. E é desse embate que o discurso filosófico e a produção da arte derivam seu poder criativo e sua tensão não resolvida, bem como é, igualmente dele, que o direito penal encontra os seus imperativos que o justificam, enquanto resposta violenta à própria violência.

Mas nos parece que o clima espiritual do antigo século XX, e do agora nosso século XXI, está marcado por uma essencial exaustão. Nossa cronometragem interior e os contratos com o tempo, que tão largamente determinaram nossa consciência, apontam agora para o crepúsculo, com uma intensidade mais fundamentalmente ontológica (isto é, com contornos relativos à essência, ao próprio tecido do ser). Somos, ou nos sentimos, verdadeira e tristemente, uns retardatários.

Há um ar de despedida, que nos leva a entregar nossas percepções mais íntimas a algum ser salvador, ou mesmo a alguma teoria redentora. O conjunto dessas apreensões se torna ainda mais perturbador na medida em que destoa do fato simples de que, nas economias desenvolvidas, a duração e a expectativa de vida estão aumentando, na mesma proporção em que, em economias em desenvolvimento, crescem a pobreza, a miséria, a destruição do ambiente, o fundamentalismo de todos os matizes, bem como o terrorismo internacional.

As sombras crescem mesmo sob a luz que teima resistir. Parece, numa situação paradoxal, que nos inclinamos em direção à terra e à noite, como se fossemos plantas heliotrópicas em direção ao sol. Nossa natureza é dominada por uma sede enorme de explicações e de causalidade, bem como de um desejo ardente em encontrar soluções.

O garantismo é uma dessas muitas soluções esperadas.

Mas o que poderá fazer-se com toda a filosofia que baseia o garantismo, numa estrutura de experiência vivida tão difusa quanto variada! Ante a violência banalizada! Ante o medo generalizado! Ante a crescente invasão em nossos lares! Ante o domínio do mundo externo pelos criminosos que, de dentro dos presídios comandam os delinquentes que estão soltos nas ruas!

São questões que valem a pena ser colocadas com seriedade.

Basta de buscarmos fórmulas mágicas e deslocadas da realidade. Pelos menos, a partir do que podemos concluir, baseados na evidência histórica, a desumanidade é, infelizmente, perene, incontrolável, indômito, indomável, invencível, rebelde, irresistível, indomesticável, onde chegamos à triste conclusão de que as ciências penais já fracassaram no combate a estas situações verdadeiramente necrológicas.

Não temos tido acesso concreto a utopias, a instâncias de perdão ou a comunidades de justiça. Por outro lado, nossos terrores atuais, em relação à violência nas ruas, em relação às agressões e hostilidades na família, à fome e à desesperança predominante em nosso Terceiro Mundo, são evidentes, e não fantasiosos.

Que se fazer ante a possibilidade iminente de doenças pandêmicas, e à regressão representada por claros, manifestos, patentes e evidentes conflitos étnicos selvagens, que devem ser considerados, em realidade, contra o pano de fundo de um momento existencial absolutamente excepcional. Excepcional porque, mais ou menos a partir do período de Waterloo até a eclosão dos massacres no front ocidental em 1914/1916, a burguesia europeia e norte-americana, viveu uma fase privilegiada: foi, na verdade, um verdadeiro armistício da história para com a própria história. Fortalecidas internamente pela exploração do trabalho industrial e, externamente, pela dominação neocolonialista, essa burguesia conheceu um século de progresso, de administração liberal, de oportunidades ao Welfare State e que lhes transmitiu um estado de espírito de considerável esperança.

Tudo isso, sob o manto de uma miséria construída em suas próprias sociedades, bem como do restante do mundo.

E é sob o crepúsculo idealizado desse calendário excepcional que, recorde-se a constante afirmação, de que esses anos, anteriores a agosto de 1914, foram de um ‘longo verão’. E que somos hoje obrigados a enfrentar todos os nossos atuais desconfortos, desde lá advindos.

Os fetichismos que enganam as sociedades democráticas, considerados como a encarnação do espírito dos arremedos de soluções estéreis, tais como, a globalização e a sociedade virtual, marcam a ressaca em que nos encontramos presentemente, mesmo nos países ditos de primeiro mundo, tanto que, são deles que emergem, com força total, a figura do garantismo.

Isso é assim, porque toda vez em que se levam em conta os mecanismos seletivos da ilusão e da nostalgia, a verdade ressurge: para toda a Europa, Rússia, América, Terceiro Mundo et caterva, o século XX revelou-se um período engendrado num verdadeiro mal dos infernos. Entre 1914 e a limpeza étnica nos Bálcãs, bem como as lutas na Chechênia, os historiadores calculam em bem mais de 100.000 milhões os números de homens, mulheres e crianças mortos pela guerra, pelo fundamentalismo, pela fome, pela deportação, pelos crimes políticos, quando não pelas doenças físicas e mentais.

É toda uma geração que, geneticamente, foi amputada da humanidade. E é tão forte essa herança que se viu por bem engendrar-se a expressão “banalização do mal ”.

Entretanto, é verdade que já houve casos escabrosos de massacres, de pestes e de fome antes do falado século XX. O colapso humanitarista do século XX é fruto de enigmas específicos. É um colapso provocado, não por cavaleiros em alguma estepe distante, nem por bárbaros do lado de fora dos portões da cidade.

Não, é um baque que surge dentro da própria cultura moderna.

Veja-se o nacional-socialismo e o stalinismo, veja-se o fundamentalismo tido como religioso, com suas reconhecidas diferenças, nascem no interior físico do próprio contexto dos grandes centros de civilização, de seus instrumentos administrativo-sociais, de sua educação, de seus progressos científicos, e de suas próprias organizações humanistas, sejam elas cristãs ou não.

A catástrofe que abalou a civilização ocidental, e que hoje traz desenhos novos e ainda mais assustadores, também foi peculiar em outro sentido. Ela fez retroceder avanços anteriores. Mesmo os irônicos e cínicos filósofos do Iluminismo (como Voltaire), com toda a segurança, predisseram a abolição definitiva da tortura judiciária na Europa. Julgava-se ser inconcebível um retrocesso generalizado à censura e à queima de livros, e ainda mais impensável, a queima de heréticos ou dissidentes, pois afinal, isso representava o mundo da famigerada inquisição eclesiástica.

O liberalismo do século XIX e o positivismo científico, consideravam evidente, em si mesma, a expectativa de que a difusão da escolaridade, do conhecimento, da produção científica e tecnológica, do livre intercâmbio e do contato entre comunidades diversas, resultaria numa melhoria concreta da civilidade, da tolerância política e dos mecanismos dos negócios públicos e privados.

Mas, cada um desses axiomas de bem fundada esperança comprovou-se falsos. Não foi só a educação em si que se mostrou incapaz de fazer com que a sensibilidade e o conhecimento resistissem à irracionalidade da violência banalizante.

Num nível muito mais perturbador, a evidência comprova que a própria intelectualidade refinada, o virtuosismo estético, a apreciação das artes, a pretensão normatizadora das leis, e a eminência jurídica, colaboraram ativamente com as determinações totalitárias ou, no melhor das situações, permaneceram indiferentes ao sadismo que os circundava.

Anote-se que no auge do regime nazista o ditador frequentava grandes teatros, com óperas wagnerianas e estímulo às artes, concertos fulgurantes, exibições em grandes museus, publicações de livros eruditos e consideráveis desenvolvimentos da pesquisa acadêmica, tanto em campo científico quanto humanista, tudo florescendo bem próximo aos campos de concentração.

Violência urbana e rural, violência contra minorias reais ou culturais, sequestros e torturas estatais e particulares foram emblematicamente paralelas às discussões que o discurso jurídico elaborava sobre a melhoria das condições democráticas das sociedades.

A engenhosidade tecnocrática, ou docilmente se submeteu, ou permaneceu neutra à convocação do sentimento de humanidade. O grande ícone de nossa época é a preservação de um arvoredo amado por Goethe dentro de um grande campo de concentração.

Nós nem começamos a avaliar os danos infringidos ao homem como espécie e, mais ainda, como uma espécie que se auto-intitula sapiens, pela série dos eventos históricos que se precipitaram no mundo ao longo de todo o século XX.

Nem começamos também a descobrir como lidar com a coexistência, no tempo e no espaço, de um lado, com a produção ocidental de supérfluos e, de outro lado, com a proliferação da fome, da pobreza e da mortalidade infantil que agora se abatem sobre mais de três quintos da humanidade.

Essa coexistência se torna ainda mais implacável graças à imediatez instantânea da apresentação verbal e gráfica nas mídias virtuais e globais.

Há uma espécie de dinâmica ensandecida e rigorosa em nossa destruição sistemática de tudo o que restou de nossos recursos naturais. O lado sul do Everest, por exemplo, é hoje um grande depósito de lixo. As pirâmides de Gizé estão correndo um sério risco de desaparecerem, fruto da poluição e do descaso. Nossos rios se relevam pela poluição. A natureza morre ante o descaso da humanidade.

Passado mais de meio século de Auschwitz, assiste-se a guerra no Iraque, a guerra no Afeganistão e a expansão do terrorismo fundamentalista, ligadas a todas as guerras cibernéticas universais. O resto do mundo, absolutamente consciente dos fatos, nada faz. Ao contrário, novas armas (como as informações carregadas pela fibra óptica) estão sempre sendo produzidas e distribuídas impunemente a partir das fábricas que, agora trazem, pelas mãos dos bandidos, os campos de morte para as ruas de nossas cidades.

E pensamos somente em desarmar os homens de bem (Estatuto do Desarmamento no Brasil). Incautos, entregamos nossas armas de defesa pessoal às nossas ditas autoridades, muitas vezes mostrando-nos, orgulhosamente, ante as câmeras de televisão, quando não em busca de alguns tostões.

É importante esclarecer um fato: a submissão econômica, a opressão e a irracionalidade social sempre foram endêmicas na história, seja ela tribal, ou urbana.

Contudo, graças à magnitude dos massacres, ao contraste insano entre a riqueza disponível e a atual crescente miséria, agravada pela probabilidade de que armas ainda mais devastadoras possam, de fato, vir a aniquilar o homem e seu ambiente, o século XX acabou forjando uma nova justificativa que acreditamos, no nosso século XXI, que responde, simplesmente, a uma desesperança generalizada.

As catástrofes que permearam os últimos anos levantam a possibilidade distinta, não só de uma virtual reversão da evolução, mas de uma reviravolta sistemática e total, em direção à bestialidade. E foi essa possibilidade sinistra quem transformou o livro “A Metamorfose” de Kafka, na fábula-chave da modernidade.

Mas a tudo isso resiste à máxima de que, somente o homem, a princípio, possuiria os meios para alterar seu mundo, recorrendo a cláusulas condicionais hipotéticas; cláusulas que podem criar sentenças tais como, “se César não tivesse ido ao Capitólio naquele dia …”, ou cláusulas que podem ser teorias de transformação e renovação, como o Garantismo de Ferrajolli.

Nesse contexto, breve, apesar de exposto de forma já um tanto extensa, observamos a formação de Ferrajolli, que preocupado com a sua realidade, mais humana do que italiana, lança as bases do garantismo.

Em um primeiro momento, voltado para responder as limitações da pena, que se reconheceu ter fracassado em seu objetivo ressocializador.

Voltado, em um segundo instante (fruto dessa crítica laica que busca dessacralizar o instituto da pena) para a construção do instituto do garantismo como um princípio geral do Direito, em busca da construção de uma nova relação do Estado com o sujeito de uma nova cidadania.

Esse segundo momento é o que nos interessa, pois é a partir dele que o percebemos a sua existência ante a legislação de nosso país.

Hoje, principalmente como efeito da Constituição de 1.988, e de sua declaração de direitos e garantias, se busca estender o Garantismo enquanto princípio geral de direito.

No caso específico do direito penal, como extensão de direitos inclusive àqueles que realizaram a figura típica do ilícito, ou seja, até mesmo aos infratores das leis penais.

Sem dúvida que é uma tentativa de levar o Estado a praticar o princípio da intervenção mínima, velho corolário liberal, obrigando-o, dessa maneira, a respeitar a máxima constitucional de que “todos são iguais em direitos e deveres”, inclusive o agente do ato proibido.

Quer dizer, em nome de uma restrição do autoritarismo estatal que, evidentemente, é um absurdo, ante uma sociedade que se diz democrática, encontramos todo um discurso que busca responsabilizar o Estado, e a sociedade privilegiada, das mazelas da miséria e da exclusão de suas, hoje, quase maiorias.

Sem ter tempo para a maturação dessas ideias, vivemos, agora, sob o domínio de um discurso principiológico que, vazio, é tão ou mais perigoso do que àquele ditado pelo autoritarismo.

O garantismo, essa busca de proteção de direitos a todo o corpo social, bem como forma de limitação do poder interventor e desmesurado do poder do Estado, alia-se a dois sentimentos que expressam a nossa sociedade: a esperança e o seu contraponto, o medo.

A esperança inclui o medo do não cumprido; e o medo carrega em si uma semente de esperança, e a sugestão de uma superação, de uma possibilidade ditada pela esperança.

Em qualquer nível que não o do trivial, do vulgar, corriqueiro ou do momentâneo, a esperança sempre representa uma inferência transcendental. Uma inferência, aliás, avalizada por presunções teológico-metafísicas, no sentido mais estrito de toda presunção, e que envolvem, por isso mesmo, um investimento possivelmente injustificado.

Ter esperança é um ato de pensar, de falar, de orar, de discursar, essencialmente comunicativo, que sempre presume um ouvinte, mesmo que esse ouvinte seja o próprio sujeito falante.

O garantismo é, portanto, uma busca pelo diálogo com o Estado que, acuado, não sabe como reagir à violência, bem como, é um diálogo com a sociedade, que comumente é responsabilizada pela origem da violência.

Ele é o que justifica aos ouvintes, precisamente, o mínimo de compreensão sobre a necessidade de se construir uma sociedade onde todos tenham suas garantias e direitos humanamente respeitados.

Essa garantia proposta pelo garantismo é, por enquanto, metafísica, porque implica, para a sua realização não ideal, uma organização racional, lógica e humana do mundo, do nosso mundo. Lembrando essa organização racional proposta pelo garantismo, reporto-me a doutrina cartesiana, de que é necessariamente obrigado a apostar na suposição de nossos sentidos e do nosso intelecto. Que não é como o simples passatempo de um ilusionista maligno, ao mesmo tempo em que ele também é obrigado a incluir em sua aposta, assim como todos nós, de forma ainda mais urgente, na crença em uma moralidade de justiça distributiva, e numa co-responsabilidade, com os limites do próprio Estado.

A esperança, proposta pelo garantismo, não tem sentido em uma ordem totalmente irracional ou submetida a uma ética arbitrária e absurda. Da forma como se estruturou o comportamento humano, a esperança só é operante em termos notórios, comuns ou vulgares, nos casos em que o prêmio e a punição são definidos por possibilidades aleatórias e não controláveis.

E, assim, havemos que convir que o garantismo somente pode ser perceptível ante uma realidade social verdadeiramente democrática.

Portanto, em conclusão, o garantismo, movimento surgido no seio de uma tradição européia, conflitada pela sua própria experiência histórica, busca responder a essa crise de paradigmas que assombrou o pensamento humano e social, e que, principalmente, tomou de assalto o discurso jurídico, fundamentalmente, tentando resgatar a relação do sujeito com o Estado, através do direito penal.

Resgatar, aqui, tem uma conotação de construção de uma outra sociedade, na qual seja possível acreditar que todos possam ser iguais, mas que, em nosso caso, ainda se encontra distante, pois que não se pode afirmar garantismo político quando milhões não têm comida, não têm casa, não tem saúde e nem esgoto nas ruas, muito menos educação.

Tudo isso pode ser um verdadeiro sonho de um homem otimista, que acredita como Shakespeare em, “… sonhos que alimentam a alma daqueles que podem se dar ao direito de sonhar”.

Retornamos, assim, ao momento inicial de nossa reflexão.

Colocada toda essa problemática, pergunto: é possível a construção de uma cidadania mais efetiva? E essa cidadania é pertinente sem a aplicação de uma política criminal garantista?

A resposta é evidente: sem o efetivo respeito aos valores dos direitos do homem, seja ele o homem-vítima ou homem-criminoso, isso é completamente impossível. Mais impossível se o estado não atende às três obrigações constitucionais que o obriga dar escola, saúde e segurança. Se  a corrupção é tolerada por parte considerável dos três Poderes da República, inclusive e principalmente de parte do Poder Judiciário!

E esses direitos humanos não podem ser confundidos com aqueles que estão consagrados na nossa Constituição, pois os direitos humanos pertencem ao homem, os da Constituição, são os denominados “Direitos Fundamentais”.

Direitos humanos, exatamente aqueles que alicerçam o Estado de Direito com o grande anseio do respeito aos seres humanos, que nem os fariseus negam existirem, mas que têm sido reconhecidamente vilipendiados.

Direitos humanos que se busquem, em oposição ao bem comum, como se a felicidade fosse alheia às necessidades atuais de uma sociedade desumanizada pelo materialismo desenfreado.

Direitos humanos que representem as garantias individuais e não as salvaguardas do poder, dos desmandos e da destruição  das instituições.

Direitos humanos que tenham asseguradas, tanto a igualdade de todos perante a lei, quanto a liberdade individual, a de imprensa, a de ensino, a de reunião e associação, a inviolabilidade do domicílio, da correspondência e da propriedade.

Direitos humanos que reproduzem a afirmação plena da garantia mínima que possa oferecer ao indivíduo, o de que possa contar, no mínimo com o direito à maior amplitude de defesa.

O art. 5º de nossa lei maior, é o espaço em que esses direitos ditos fundamentais se transformam em norma, presentes no universo do dever ser!

São eles, sem dúvida, a reserva política, a indispensável reserva moral e jurídica de uma sociedade democrática, em nosso caso, pois que, são os marcos na construção e na busca de um espaço social mais justo, já que ainda não somos uma verdadeira sociedade democrática.

Falta-nos, ainda, aquilo que Kant denominou de virtudes universais, isto é, imperativos categóricos a todos, e que, assim, seriam a reserva ética dos homens, especialmente, dos homens que o povo confia através de um mandato eletivo.

E, qualquer realidade social que não experimenta uma presença sólida desses valores, passa ser uma realidade muito próxima da quebra do velho contrato social, que tanto assombrava a Hobbes.

Denunciar é preciso! Desejar a mudança dessa situação desalentadora é mais do que uma obrigação. Obrigação essa que se busca pelo garantismo e que se inicie com o direito à vida, em seu sentido mais lato; que a cidadania possa ser consagrada pelo direito a todos os bens juridicamente tutelados.

E o que sei, fruto de minha experiência enquanto ser humano, investido na posição de advogado criminalista, é a de que, a derrota dessa esperança será, necessariamente, uma longa descida ao inferno, onde, desta vez, nem mesmo Virgílio conduzirá a humanidade em busca da redenção, e nem haverá Beatriz alguma a salvar o homem de seu inferno.

[1] Advogado Criminalista, Pós-Graduado em Direito Penal, Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Delegado Regional do Instituto dos Advogados Brasileiros do Rio de Janeiro, Sócio Fundador da Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa (CJLP) Lisboa, condecorado com a Medalha Oswaldo Vergara por serviços prestados a advocacia gaúcha.

[2] Sócrates (470- 399 a.C.), filósofo grego. Foi o fundador da filosofia moral, ou axiologia. Nascido em Atenas, familiarizou-se com a retórica e a dialética dos sofistas, pensadores profissionais que combateu com veemência. Usou para a análise da alma humana um esquema semelhante: a racionalidade, a vontade e os apetites. Uma pessoa justa é aquela cujo elemento racional, com ajuda da vontade, controla os desejos. Sua teoria ética repousa na suposição de que a virtude é conhecimento e que este pode ser aprendido. Esta doutrina também deve ser compreendida no âmbito de sua teoria das idéias. 

3 Platão (428- 347 a.C.), filósofo grego, um dos pensadores mais criativos e influentes da filosofia ocidental. Discípulo de Sócrates, aceitou sua filosofia e sua forma dialética de debate. No ano de 387 a.C., fundou em Atenas a Academia que Aristóteles freqüentaria como aluno. Seus escritos, em forma de diálogos, podem ser divididos em três etapas de composição. A primeira representa o desejo de divulgar a filosofia e o estilo dialético de Sócrates. As segunda e terceira, compostas pelos diálogos dos períodos intermediário e final de sua vida, refletem sua própria evolução filosófica, expondo já suas próprias ideias.

4 Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo e cientista grego. Estudou em Atenas, na Academia de Platão. Foi tutor de Alexandre III o Grande. Em Atenas, inaugurou o Liceu, que chegou a ser conhecido como escola peripatética. Sua filosofia se baseia na biologia, no empirismo e no formalismo (dedução racional).

[5] Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à época neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica:

[6] Escolástica, movimento filosófico e teológico que pretendeu usar a razão natural humana e, particularmente, a filosofia e a ciência de Aristóteles para compreender o conteúdo sobrenatural da revelação do cristianismo. Foi o principal movimento nas escolas e universidades medievais da Europa, de meados do século XI a meados do século XV. Santo Agostinho foi sua principal autoridade em teologia. Entre os escolásticos mais notáveis dos séculos XI e XII, encontram-se Santo Anselmo, Pedro Abelardo e Roscelino, tendo este fundado a escola conhecida como nominalismo. No século XIII, destacam-se São Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Roger Bacon, São Boaventura e Duns Scotus.