PL que propõe redução de pena para doadores de órgãos coisifica pessoas e reforça racismo, diz IAB

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“A existência de proposta legislativa que busca viabilizar a ‘barganha’ da pena pela doação de órgãos demonstra a coisificação do homem quando inserido no sistema punitivo”, avalia o parecer aprovado pelo plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) na semana passada. A ideia foi apresentada no Projeto de Lei 2.822/2022, que pretende assegurar a doação de órgãos duplos como hipótese de remição da metade da pena. No entanto, segundo a análise da Casa de Montezuma, além de coisificar pessoas vulneráveis, o PL pode reforçar o racismo estrutural do sistema penitenciário brasileiro, já que 67,4% dos detentos são negros.

De acordo com a análise realizada pelos consócios Guilherme Gustavo Vasques Mota, Silvia Souza e Kátia Rubinstein Tavares, o projeto de lei, de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), “implica a atribuição de valor aos órgãos humanos – mais especificamente, a corpos condenados – e possibilita uma troca em que o prisioneiro se expõe a um arriscado procedimento cirúrgico para doar um órgão e em troca receber uma redução de pena”.

O parecer apreciado pelas comissões de Criminologia e de Direito Penal do IAB afirma que a solidariedade, apresentada como justificativa da proposta, deve ser questionada: “Onde está a solidariedade em se admitir que a dignidade da pessoa humana seja tratada como moeda de troca no sistema punitivo?”.

Para os relatores, é preciso ponderar que o projeto se insere no contexto de desigualdade do sistema punitivo. “Nos presídios, percebe-se um perfil predominante: a população carcerária é composta, majoritariamente, de pessoas pobres, com ensino fundamental incompleto, que não possuem renda ou emprego, apresentam histórico de abuso familiar e habitam locais onde há ausência dos serviços estatais”, afirma o parecer. O Supremo Tribunal Federal (STF), sublinha a análise, já reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional das prisões brasileiras.

Segundo os relatores, a troca de um órgão pela redução de 50% da pena imposta atribui valor ao corpo humano. “O debate necessariamente passa pela reflexão sobre a imperativa proibição legal de venda de órgãos – ao menos, por pessoas fora da prisão”, diz o parecer. Silvia Souza explicou que é fundamental dar destaque à relação entre a prisão e a necropolítica brasileira, caracterizada pelas práticas estatais, discursivas ou não, que conduzem à morte as pessoas consideradas indesejáveis. “A definição de quem são aqueles expostos às práticas estatais de vida ou de morte, no entanto, sempre foram pautadas pelo racismo”, disse a advogada.

Na visão de Guilherme Gustavo Mota, o conteúdo da proposta lembra práticas de campos de concentração. “Todos os sistemas jurídicos ocidentais, a partir da modernidade, incluindo o nosso e a nossa Constituição, consideram a visão da dignidade como um princípio de não coisificação. É por isso que não é possível haver doação de órgãos em troca de alguma coisa em nossa sociedade de uma forma geral, fora da prisão também, porque se entende que nós não somos seres descartáveis”, afirmou o relator.

Em nome da indicante do parecer, Ana Arruti, a presidente da Comissão de Criminologia, Marcia Dinis, afirmou que a proposta é uma violação aos direitos humanos e destacou que o IAB precisa manter posição firme diante desse tipo de proposição: “Como instituição que está na vanguarda do Direito e que preserva o Estado Democrático, temos que estar muito alertas, porque nos manifestamos sobre esse projeto, mas outros virão”.

Parecer complementar

Durante o debate sobre o projeto de lei, o consócio Paulo Fernando de Castro apresentou ao plenário a análise complementar da matéria feita pela Comissão de Direitos Humanos, da qual o advogado é secretário. O parecer endossa o caráter racista da proposta legislativa. De acordo com Castro, a proposta é ainda classista e aporofóbica.

“Deve ser rejeitada a referida proposta legislativa por ferir tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, ratificados pelo Congresso Nacional. O PL deve ser rejeitado por configurar a possibilidade da prática de tortura, experimento científico e violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Ele atenta contra a possibilidade de autodeterminação e direitos à personalidade, viciando o consentimento da pessoa presa”, disse o advogado.