Fabricante de medicamentos terá de indenizar criança que desenvolveu síndrome rara após ingerir Dipirona

Wanessa Rodrigues

Giovanna Ricastre dos Santos, de 9 anos, se veste com a graça das meninas de sua idade. Vestido, sandálias e uma fita para enfeitar os longos cabelos loiros cacheados.  Os óculos escuros, com armação cor de rosa, parecem completar o visual da menina. Porém, eles escondem as sequelas deixadas por um medicamento que tem como princípio ativo a dipirona. Após ingerir a medicação, ainda aos cinco anos de idade, Giovanna desenvolveu a Síndrome de Stevens-Johnson, uma doença rara que afeta somente de 1 a 6 em cada milhão de pessoas que fazem uso do medicamento. Em decorrência, ela perdeu 100% a visão do olho esquerdo e, do lado direto, enxerga apenas vultos e sombras.

Giovanna com os pais, Rodrigo e Elizandra.

Os pais da criança, Rodrigo Pinto Ricastre, de 31 anos, Elizandra Nasário dos Santos, 28, relatam que, no dia 4 de outubro de 2013, Giovanna, que estava com cinco anos de idade, reclamou à avó-paterna dizendo que estava com dor de cabeça. A avó constatou que a menina estava com febre e ministrou cinco gotas de dipirona fabricada pela Mariol Medicamentos. O remédio havia sido adquirido há cerca de um mês e indicava como data de validade abril de 2016. Ela já tinha tomado o medicamento outras vezes e nunca demonstrou nenhuma reação.

Segundo informa o casal, no dia seguinte à ingestão do medicamento, começaram a aparecer lesões por todo o corpo da criança, inclusive nas mucosas orais e oculares. No dia 7 daquele mês, o casal levou a filha ao pronto atendimento do Hospital Materno Infantil (HMI), em Goiânia, onde se contatou que o medicamento foi a causa de evolução para síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) (por meio de exames e laudos). Giovanna foi induzida ao coma e ficou na UTI pediátrica por quase um mês. Além de perder a visão, ela teve queimaduras de 3º grau por todo o corpo.

Durante o tratamento inicial de Giovanna, os pais relatam que sofreram um verdadeiro calvário, pois a agonia, a frustração, a impotência e a dor em relação ao sofrimento da filha, além da incerteza sobre a sobrevivência da mesma, eram constantes. Eles contam que os médicos chegaram a dizer que dificilmente ela escaparia com vida. Mas Giovanna superou as expectativas na luta pela sua vida.

Agora, a batalha é para ter um futuro melhor, pois ela ainda precisa de tratamento e de ferramentas para se desenvolver. Giovanna tem, por exemplo, de realizar procedimento cirúrgico de reabertura das pálpebras com frequência, pois os cílios vão nascendo e crescendo em sentido oposto ao comum, agredindo os olhos. Quanto ao desenvolvimento escolar, ela frequenta três instituições diferentes por semana e precisa de uma máquina de escrever em braile, que custa cerca de R$ 6 mil.

“Tem horas que nós, como pai e mãe, choramos ao relembrar tudo o que passamos e todo o sofrimento de nossa filha. A Giovanna ficou praticamente um ano sem poder sair de casa. E, quando estava dentro de casa, não podia ficar com as luzes acessas. Ver nossa única filha sofrer dessa maneira é muito doloroso. Às vezes, nos perguntamos o porquê disso ter acontecido. Mas procuramos ser fortes todos os dias por ela. Agora, temos de seguir em frente e dar um futuro melhor para a Giovanna”, diz, emocionado, Rodrigo.

Na Justiça
Após o ocorrido, os pais de Giovanna ingressaram na Justiça contra a Mariol Medicamentos, fabricante do remédio que foi ingerido pela criança. No último dia 21 de agosto, eles conseguiram uma vitória em primeiro grau. O juiz Átila Naves Amaral, da 3ª Vara Cível de Goiânia, condenou a empresa ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 200 mil à menina e, de R$ 100 mil, para o pai e o mesmo valor para a mãe da criança. Além de pensão mensal equivalente a um salário mínimo e indenização por danos materiais, equivalente às despesas que a família teve com o tratamento.

Advogados Raphael Rodrigues e Tiago Felipe de Oliveira.

Porém, nos próximos dias, os advogados Raphael Rodrigues e Tiago Felipe de Oliveira, que representaram a família na ação, devem entrar com recurso contra pontos da sentença que não foram acolhidos, como indenização por danos materiais relativos ao tempo em que o pai de Giovanna ficou sem trabalho por conta do ocorrido. Além disso, em relação à indenização por danos estéticos, já que a menina ficou com sequelas visíveis nos olhos e teve esse pedido indeferido pelo magistrado.

O pai de Giovanna, que é pintor, recebia um bom salário na época e economizava para comprar uma casa. Junto com a esposa, teve de usar todo o dinheiro que tinha para custear o tratamento da filha, vender bens e ainda contar com a ajuda de amigos. Antes de conseguir um plano de saúde, ele gastou mais de R$ 130 mil com o tratamento. Hoje, Rodrigo ganha R$ 1,9 mil mensais e mais um salário mínimo de pensão da Mariol Medicamentos, valor que custeia apenas as despesas com plano de saúde, van escolar, e medicamentos para a menina. Somente de aluguel com a casa onde eles moram, ele paga R$ 600. Sua esposa teve de deixar o trabalho para cuidar exclusivamente da filha.

Contestação
Na ação, a Mariol se defende com sob a alegação de que não há meios de ser da empresa a responsabilidade pelo ocorrido, já que a Síndrome de Stevens-Johnson pode ser desencadeada tanto por medicamento como por infecção, essa, por exemplo, justificada mediante a alegação de que a criança encontrava-se febril. Alegou, ainda, que a previsão de possibilidade de desencadeamento da referida síndrome é prevista em todas as bulas do medicamento, inclusive de medicamentos de outras farmacêuticas.

Porém, ao analisar o caso, o magistrado salientou que, mesmo diante da tentativa da empresa em eximir-se de qualquer responsabilidade sobre eventual desencadeamento da síndrome, o fato é que seria muita coincidência a menina, sendo uma criança saudável, utilizar o medicamento que pode eclodir a patologia, exatamente no dia seguinte à ministração, vir a apresentar os sintomas e esses decorrerem de causa diversa.

Risco do empreendimento
O magistrado observou que o simples fato de fazer constar na bula a possibilidade de ocorrência da patologia, mostra que há riscos inerentes a qualquer pessoa que consuma o medicamento, motivo pelo qual se deve aplicar a teoria do risco do empreendimento. Ou seja, a empresa que se dispõe a comercializar determinado bem de consumo está necessariamente vinculada aos seus resultados, independentemente de culpa, já que assume os ônus e bônus da venda, mormente quando prevê em bula a possibilidade do desencadeamento de síndrome tão severa.

“A lei, vale ressaltar, criou para o fornecedor um dever de segurança – o dever de não lançar no mercado produto com defeito -, de tal sorte, que ao lançar e ocorrer o acidente de consumo, por ele responde independentemente de culpa e principalmente em virtude do risco do empreendimento assumido pela empresa”, disse. O magistrado completa ainda que a responsabilidade do fornecedor decorre da violação do dever de não colocar no mercado produto sem a devida segurança legitimamente que se espera, cujos defeitos acarretam riscos à integridade física e patrimonial dos consumidores.

Teses
Os advogados Raphael Rodrigues e Tiago Felipe de Oliveira esclarecem que o laboratório não errou ao fabricar o medicamento. Porém, assumiu o risco ao colocar no mercado um produto que traz risco potencial ao consumidor. Por isso, as teses apresentadas pelos profissionais na ação e que foram acolhidas pelo magistrado, foram a do risco-proveito da atividade e a falha do dever de informar por parte do fornecedor. Os advogados lembram que, em decorrência do risco inerente à utilização da Dipirona, a empresa, ao disponibilizar no mercado produtos potencialmente danosos, se estabelece como responsável pela cobertura dos eventuais sinistros que aconteçam, já que também aufere lucro com a exploração da referida atividade.

Conforme o CDC, o fabricante deve garantir que o produto não ofereça riscos à saúde. Além disso, os advogados ressaltam que os fornecedores de produtos têm o dever de informar, com clareza, de forma qualificada e eficiente, as características dos produtos e seus efeitos. Isso para orientar o consumidor quanto à fruição e riscos. Além dessas teses, os advogados ressaltam na ação que Giovanna é criança e, por isso, consumidor hipervulnerável.

Alerta
Os advogados alertam que, assim como não era previsível no caso em questão, tanto a ocorrência da referida síndrome, como a extensão do dano que simples gotas de dipirona poderiam provocar em reação adversa ao efeito proposto, a maioria da população não tem conhecimento sobre as consequências de diversos medicamentos. “E quem se depara com tal situação, é testemunha de um verdadeiro assombro e um temor inigualável”. Por isso, eles alertam para os riscos da ingestão de remédios que possam causar danos à saúde e pela busca correta do diagnóstico para verificar a verdadeira causa de doenças.