Sermão do Bom Ladrão

Ler clássicos sempre faz bem. A coluna de hoje é um retorno a um dos que mais gosto. Deixarei de fazer comentários pela obviedade e atualidade do que trago.

Vamos de Antônio Vieira, o Padre.

No Sermão do Bom Ladrão seleciono os seguintes trechos, chamando o leitor à reflexão sobre a adequação daquelas palavras escritas há mais de 350 anos…

“Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.”

Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão (…).O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno (…). Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: (…) Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”

“Declarado assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons reis? Não por um só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores; e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem.”

“Aquele que tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que os povos os servem e assistem, são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e tão clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: “Qui non vetat peccare, cum possit, jubet” [Quem, podendo, não impede o pecado, ordena-o].”

“As partes e qualidades que concorriam no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas paixões, as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as podia então haver, porque era o primeiro homem, e o único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a culpa sua? — Porque quero dar este exemplo e documento aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem.”

Em véspera de eleição, essas palavras devem ser lidas atentamente…

*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, Mestre e Doutorando em  Direito de Estado pela USP, Professor de Direito Público e Direito Urbanístico, Promotor de Justiça.