O velho arrastado e uma lição de justiça

Dia 9 de abril, um vôo da companhia United Airlines saindo de Chicago, EUA, teve seu procedimento de embarque interrompido em virtude de overbooking, e, diante dessa situação, foram feitas propostas para que, quem quisesse trocar de vôo, pudesse fazê-lo mediante reembolso e bônus. Não havendo interessados, foram “sorteados” quatro passageiros que deveriam deixar a aeronave.

Um desses passageiros era o médico de origem asiática David Dao, de sessenta e nove anos. O doutor, que já estava acomodado em seu assento, negou-se a sair, dizendo que tinha pacientes para atender.

Diante de sua negativa, a tripulação fez o que, na sua concepção, seria o mais racional: chamou a segurança do aeroporto e o senhor de 69 anos foi arrastado, com o rosto sangrando, pelo corredor do avião. Os vídeos estão pela rede para quem quiser ver.

E esses vídeos existem porque as dezenas de passageiros “corajosamente” usaram seus celulares enquanto, indignados e pensando nos futuros textos que escreveriam nas redes sociais, viam um idoso sendo levado por fortes homens para fora de seu assento.

Resumo da ópera: a companhia aérea vendeu mais passagens do que assentos e, para que o vôo pudesse decolar, escolheu aleatoriamente os passageiros que deveriam sair, pessoas que pagaram para estar lá. Negando-se, Dao foi retirado à força, enquanto bramava contra isso.

Inúmeras pessoas viram isso acontecer e se limitaram a usar seus polegares opositores para segurar firmemente seus celulares.

Essa situação faz recordar o assassinato de Kitty Genovese, em Nova Iorque, no ano de 1964. A jovem de 28 anos, atacada à noite por Winston Moseley, estuprador e assassino, gritou por socorro enquanto 38 vizinhos assistiam e ignoravam suas súplicas.

Há pesquisas posteriores que indicam que não fora exatamente dessa forma que ocorrera a omissão dos observadores, pois nem todos os vizinhos viram ou perceberam a situação, e alguns pensaram que fosse uma briga conjugal. Duas pessoas ligaram para a polícia e houve também uma corajosa senhora de 70 anos que se arriscou fora do apartamento para acudir a vítima, segurando-a em seus braços enquanto ela morria.

Muitos estudos falam que isso é resultado da difusão de responsabilidade ou o efeito do espectador. Há quem diga que o grande número de espectadores na verdade diminui a chance de alguém se dispor a ajudar, já que muitos vêem a inação dos demais e tendem a repeti-la, ou pensam que alguém saberá melhor o que fazer nessa situação ou até mesmo ficam acanhados de ajudar enquanto outros observam.

De toda forma, segundo a lenda, em 1964, 38 pessoas assistiram Kitty Genovese ser atacada e morta sem mover um dedo. Em 2017, dezenas de pessoas viram um senhor de 69 anos ser arrastado para fora de seu assento do avião também sem mover um dedo.

Com seus celulares a postos, os passageiros gravaram as cenas sem se importar com a integridade do senhor dragado pela truculenta equipe de segurança. Tinham os olhos no futuro, nas denúncias que fariam com seus vídeos, nos textos e comentários indignados que encheriam suas redes sociais de curtidas e compartilhamentos enquanto sentiriam-se verdadeiros guerreiros sociais capazes de tornar o mundo um lugar melhor para se viver.

Entre os passageiros, podemos imaginar, havia republicanos e democratas. Brancos e negros. Homens e mulheres. Latinos e norte-americanos. Heteros e homossexuais. Religiosidades diversas. Ricos e pobres.

Essa miríade de diversidade tão celebrada estava unida em um só pensamento: “que bom que não sou eu ali”. Espectadores de Kitty Genovese, a plateia do coliseu romano ou o motorista que passa devagar por um acidente, todos eles estão satisfeitos de não serem a vítima.

A covardia é a cola que une a sociedade, enquanto os que observam trocam olhares de pusilânime cumplicidade. Verdadeira pornografia da alma.

As câmeras de celulares foram apontadas para Dao porque, no íntimo, cada passageiro sabia que aquilo que acontecia era errado e injusto. Embora tenham optado pela apatia bovina do rebanho, sabiam que Dao estava sendo vítima de uma injustiça.

O Direito Natural existe, e a Justiça não é um intrincado mecanismo artificial criado pelo homem, como o candy crush. A Justiça, como outras virtudes, é inerente à natureza e se manifesta ao longo da história de diversos modos distintos, sempre na luta pela liberdade, vida e dignidade pessoal ou do próximo.

Esse reconhecimento da sensação do que é injusto não será encontrada na palestra desses filósofos de facebook e sua ética prét-a-porter. Ela é fruto de menos empáfia intelectual e mais racionalidade e intuição, a força essencial que impele o homem a opor-se àquilo que é desagregador e nocivo.

A razão, limpa das paixões e preferências, é o termômetro da Justiça, que não pode conjugar-se com a apatia, a covardia ou o interesse pessoal.

Os passageiros do vôo da United Airlines identificaram uma clara situação de injustiça, agravada posteriormente com o comentário do CEO da empresa de que Dao fora arrastado porque se exaltara. Esperava ele que o médico aceitasse passivamente a supressão de seu direito? Que não reclamasse e se entregasse em holocausto, voluntariamente, para a solução de um problema de overbooking causado pela ganância da própria companhia aérea?

Aparentemente, sim. As grandes empresas, assim como os corruptos que se aboletaram no poder público e lhes dão respaldo, esperam que cada cidadão esteja disposto a sacrificar sua liberdade, sua dignidade, sua saúde e até a sua vida, para que empresários e políticos possam desfrutar de uma vida de sultão das mil e uma noites, pois, enquanto te arrastam para fora do avião e te espremem no metrô da Sé, eles viajam o mundo em jatos particulares ou na primeira classe para Paris.

Mas isso é esperado. O poder corrompe e o corrupto deve ser combatido.

O que causa mais indignação é o silêncio covarde dos que assistem uma injustiça ser perpetrada e optam pela inação, pela asquerosa cumplicidade que há entre o carrasco e os espectadores.

Ninguém esperava uma rebelião de passageiros, por certo, com tochas e forcados, mas sim uma resposta à altura, além da mera gravação do asqueroso tratamento dado ao médico. Ninguém se opôs à retirada abrupta de Dao, não havia em todo o avião um único passageiro disposto a ceder seu lugar para um idoso, cada um tinha algo mais importante para fazer e, perdido em seus interesses, era incapaz de olhar o outro.

Uma história atribuída a Plutarco, e lá vou eu falar de novo de Esparta, narra que durante os jogos olímpicos gregos, com toda a multidão e balbúrdia, um velho buscava em vão um lugar para sentar.

Muitos gregos observavam esse idoso que mancava em sua inútil tentativa, alguns fazendo piada sobre sua condição. Passou por inúmeras delegações sem sucesso. Ao se aproximar de onde os espartanos se encontravam sentados, todos os homens se levantaram e cederam o seu lugar.

Observando isso, os gregos das demais cidades-estado aplaudiram a atitude espartana, ao que o velho disse, em bom tom:  “Vejo que todos os gregos sabem o que é certo, mas só os espartanos fazem o que é certo”.

Um mundo melhor de verdade vai além da interação nas redes sociais. Exige que se salte o abismo entre saber e fazer.