O peso da toga: José quer morrer – Parte 2

Virou notícia no Brasil a demanda judicial proposta pela mãe do jovem José Humberto, morador de Trindade, Goiás, para obrigá-lo a continuar o tratamento de hemodiálise do qual havia desistido com o claro intento de abreviar sua existência.

O tema suscitou novos debates sobre antigas polêmicas, como o direito de morrer e até onde há liberdade em não se submeter a tratamentos médicos.

Cabe agora ao juiz decidir, interpretando as leis, se é possível obrigar José a prosseguir o tratamento, como quer sua mãe, ou não.

Nessa tarefa estará amparado em laudos de psiquiatras e as provas nos autos, cuja finalidade é dar-lhe subsídios para que possa proferir sua decisão. No entanto, o veredito, e as consequências dele, serão sempre do juiz, aquela assinatura centralizada ao final da folha.

Nosso país conta com seus mais de 100 milhões de processos, um para cada dois brasileiros, dos quais cerca de 80% estão na Justiça Estadual, como o caso de José.

O primeiro grau é a porta de entrada para a Justiça, onde o cidadão tem seu contato com o magistrado e é ouvido diretamente, não só por intermédio do papel.

Milhares de processos são decididos diariamente pelos magistrados brasileiros, causas envolvendo guarda, alimentos, adoção, despejo, indenização, pedido de medicamentos, vagas em UTI, procedimentos cirúrgicos, retomada de propriedade, prisão ou liberdade e inúmeras outras situações. Pelas mãos dos juízes passam os dilemas da sociedade contemporânea em um país onde, para fazer valer seu direito, não basta existir a lei, é preciso recorrer ao Judiciário.

E esse atendimento acontece não só no horário comercial, mas também noite adentro, finais de semana e feriados, já que os juízes permanecem em plantões de 24h para atender quaisquer causas urgentes, plantões que em muitos estados não são compensados ou remunerados, de forma que muitos magistrados e servidores trabalham em sistema de sobreaviso de segunda a segunda, sem interrupção.

E tudo isso é necessário? Sim. Vivemos em um país onde a justiça espontânea não é parte do cotidiano, onde cada um, seja rico ou pobre, quer tirar vantagem. Assim, o Judiciário não pára, porque as questões envolvendo saúde, família, liberdade e propriedade não escolhem dia e hora para ocorrer.

Ser magistrado não é uma profissão que permite pendurar a toga depois do expediente e retomá-la pela manhã. Os processos nos seguem até em casa, durante o jantar, na hora de dormir, durante o banho.

Durante as noites, finais de semana e feriados, mesmo quando não escalados para o plantão, muitos de nós participam de debates em espaços virtuais em busca de melhores formas de exercer a judicatura. Trocamos informações, impressões e experiências.

O juiz vocacionado vive a Magistratura.

Mesmo com esse intercâmbio, julgar sempre será um ato solitário, e isso vale especialmente para o primeiro grau, onde o juiz, em seu gabinete, delibera sobre a melhor interpretação da lei sobre o caso posto à sua análise.

Os melhores juízes que conheço, e também os mais desgastados física e psicologicamente, são os que possuem essa rotina de nunca pendurar a toga. E são muitos.

Isso que chamo de “peso da toga” não é algo novo, mas tem acompanhado aqueles a quem coube a função de julgar ao longo da história.

De forma ilustrativa vale citar o grande Francesco Carnelutti, que asseverou, com muita propriedade, que “nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar outro homem, aceitaria ser juiz”.

Também Piero Calamandrei, grande crítico dos juízes, disse:

“Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava as noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poderá dormir tranquilamente o juiz que sabe possuir, num alambique secreto, aquele tóxico subtil que se chama injustiça e do qual uma ligeira fuga pode bastar, não só para tirar a vida mas, o que é mais horrível, para dar a uma vida inteira indelével sabor amargo, que doçura alguma jamais poderá consolar?”

Não existe “vácuo moral” para o juiz vocacionado. Não é possível aplicar a lei de modo fordiano e lavar as mãos. A verdadeira Magistratura não é a boca da lei, mas a sua alma, a que busca dar vida à letra fria dos alfarrábios e não se afunda na fria psicopatia dos livros de doutrina, onde vidas são estatística e problemas são palco para a vaidade de palestrantes, quando não textos prenhes de ideologia e falsa imparcialidade com o objetivo de impor uma forma de pensar.

O temor de cometer uma injustiça e a dúvida de alguma vez tê-la cometido são constantes na vida dos magistrados. A atividade de julgar não é um privilégio, mas um peso a exigir uma ponderação incessante na busca da Justiça.

Nenhum cursinho ou livro jurídico será capaz de ensinar o que fazer diante de uma criança abusada sexualmente por membro da família, cujos pais estão presos ou desaparecidos, e onde os únicos parentes vivos dão mais valor à palavra do estuprador condenado do que à da vítima.

A função da Magistratura não pode ser tratada com leviandade, nem convertida em uma atividade mecânica e repetitiva. Esse tipo de prática se amolda apenas a governos totalitários e a uma população desprovida de direitos.

O caso de José está nas mãos de um juiz que decidirá se ele tem condições de exercer livremente sua vontade, e, portanto, desistir do tratamento e acelerar sua morte, ou se, ao contrário, não pode responder por suas ações e deverá se submeter obrigatoriamente à hemodiálise.

Se você vive há tempo suficiente para ter tomado decisões erradas, consegue imaginar o peso do risco de cometer uma injustiça ou o remorso de tê-lo feito.

Para quem se compromete com a Magistratura, a toga tem o peso do mundo, e a sociedade não merece um juiz que carregue menos que isso.